Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus ataque à democracia

Desbolsonarizar o futuro, reparar o passado

Anistiar e não mudar as coisas não nos interessa mais

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A delinquência política bolsonarista não foi delinquência de um homem só. Foi programa estruturado de governo que atiçou atores públicos e privados, civis e militares, industriais e extrativistas, urbanos e rurais. Em geral, fora da lei. Em bom número, armados. Com juristas invertebrados debaixo do braço. Praticando autolegalidade.

O homem que dá nome, rosto e voz para a época de maior incivilidade federal da história brasileira recente agregou muita gente na construção de uma máquina multifacetada e pluriautoral. Causou morte, sofrimento e empobrecimento por ação e omissão dolosas.

Essa engrenagem colocou o Brasil entre os líderes da onda global de autocratização, na companhia de Índia, Nicarágua, Hungria, Polônia, etc. Cada um a seu modo e ritmo, com caixa de ferramentas compartilhada, foi esvaziando liberdades, exaurindo instituições de controle e corrompendo a competição eleitoral.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, ao sair da sede da PF em Brasília após prestar depoimento - Pedro Ladeira - 18.out.23/Folhapress

Jair Bolsonaro foi derrotado nas eleições de 2022. Depois de acossar a Justiça Eleitoral com militares, despejar bilhões de reais em orçamento secreto, tecendo trama clientelista interfederativa, instigar patrões a constranger preferências eleitorais de empregados, exigir vigilância nas repartições, espalhar propaganda teo-eleitoral nas igrejas e re-turbinar sua usina de desinformação e incitação de medo e ódio, perdeu.

Por pouco, a marcha da autocratização não completou seu ciclo em outubro de 2022, pelo voto, e em janeiro de 2023, pelo coturno. A reeleição do autocrata costuma ser o ponto de não retorno, a virada definitiva da transição de regime. Derrotar eleitoralmente o autocrata e sobreviver a tentativa de golpe, desenhado em minuta de decreto, pode desacelerar a marcha da erosão democrática, mas não a interrompe. Há tarefas fundamentais pendentes.

Em primeiro lugar, as tarefas do voto: projetos eleitorais bolsonaristas continuarão a explorar o espólio extremista que se forjou no Brasil. Nas eleições municipais de 2024, e ainda mais nas presidenciais de 2026, continuarão a nutrir ambições de ruptura democrática.

Há tarefas de mudança normativa e institucional: a reforma das Forças Armadas e da arquitetura policial, a despolitização de carreiras de Estado, a regulação de plataformas de tecnologia, a construção mais criteriosa de uma doutrina jurídica da democracia militante que não dependa só do ímpeto da caneta de Alexandre de Moraes.

Não se pode contar com o concerto improvável entre STF e TSE atuando discricionariamente no vácuo regulatório.

E há tarefas de justiça, ainda mais urgentes. Reparar o passado costuma ser uma condição, entre outras, para que catástrofes não se reiterem no futuro. Na memória da delinquência bolsonarista, há documentos indispensáveis: relatórios das CPIs da Covid e do 8 de janeiro; as dezenas de bons pedidos de impeachment (entre os 150 apresentados); as representações criminais ao Tribunal Penal Internacional; a ação civil pública contra a Jovem Pan, o vértice oficial do esquema de desinformação, conspiração e incitação de ruptura.

Esse arsenal de fatos típicos da lei criminal precisa de consequência jurídica à altura.

A punição dos bagres patriotas acampados nos quartéis, em caravana gratuita para vandalizar os prédios do Planalto, não será suficiente. A declaração de inelegibilidade de Jair Bolsonaro e Braga Netto, passo fundamental, também não dará conta de mitigar o risco. Bolsonaro e o bolsonarismo sairão vitoriosos se permanecerem socialmente normalizados e politicamente vivos (ainda que alguns se tornem eleitoralmente impedidos por um tempo).

Em paralelo ao esforço de responsabilizar práticas criminosas, afinal, está em curso o esforço da anistia. Não mais por uma Lei de Anistia, como a de 1979, cuja constitucionalidade o STF ainda não terminou de julgar (parada desde 2011, sob relatoria de Fux, transferida para Toffoli em 2021).

Há uma anistia escondida no ilusionismo magistocrático, caso por caso, adiamento por adiamento. Embutida no devido processo legal à brasileira. Aquele que "pacifica" pela preservação da violência.

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