Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

35 anos de ambição democrática

A Constituição brasileira está sob ameaça dos gabinetes, dos porões e da hermenêutica

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Aniversários da Constituição de 1988 costumam ter, entre juristas, um certo tom triunfalista. Mesmo que reconheçam frustrações, balanços quinquenais raramente deixavam de enfatizar uma linha de progresso no desenvolvimento constitucional do país. Sua longevidade (a terceira maior da nossa história) seria fruto da virtude da resiliência e do compromisso com o Estado de Direito.

Essas convicções, se um dia fizeram sentido, estão abaladas neste 5 de outubro de 2023. O senso de retrocesso e de risco de ruptura cresceram na última década. Até entre juristas pollyanna, que olham para o mundo real e só enxergam avanços, o cenário já não está tão cor-de-rosa. Mesmo com a derrota de Bolsonaro e a interrupção momentânea do nonsense inumano e diário, suas práticas fincaram raízes na política.

O alarmismo chegou para temperar o triunfalismo. Isso sim, um avanço.

Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, apresenta a Constituição em 1988 - Lula Marques - 3.out.1988/Folhapress

Produto da Assembleia Constituinte mais democrática que já tivemos, apesar de um Congresso pouco representativo, o texto final foi impactado pela participação de movimentos sociais. Para o bem. Houve também concessões às corporações. Para o mal.

Nessa Constituição heterodoxa e sincrética, um acordo possível acima de partidos, havia mensagem de rechaço ao passado e olhar de mudança para o futuro.

A promessa de valorização da vida, da liberdade, da igualdade e da não discriminação não foi só retórica e simbólica. O texto previu motores para implementação de direitos. O SUS e o sistema de educação pública, subfinanciados, foram as maiores conquistas civilizatórias, ao lado da proteção ambiental, de comunidade indígenas e quilombolas.

Do ponto de vista socioeconômico, após um ciclo de redução da fome e da pobreza interrompido por crise econômica, o governo Bolsonaro, como prometido, travou políticas públicas e gerou números recordes de desigualdade e fome. E o PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) segue crescendo. A sociedade que se pretendia "fraterna, pluralista e sem preconceitos" mata como nunca.

Os números de homicídios giram em torno de 50 mil por ano (quase 80% de pessoas negras). Como em nenhum outro lugar, a polícia continua a matar (quase 7.000 em 2022) e a morrer (161 policiais). Fomos vice-campeões em assassinatos de ambientalistas no ano passado. Em assassinatos de jornalistas, fomos melhores que Haiti, México e Ucrânia. Estamos entre os cinco que mais matam mais mulheres e crianças. Matamos pessoas trans como nenhum país.

A população carcerária cresceu 20% nos últimos cinco anos. É a terceira do mundo em números absolutos e a 14ª per capita. Prisões têm sido centros de treinamento gratuitos para o crime organizado, que expande seus membros no sistema político. O STF continua a manter ladrão de shampoo na prisão.

Queríamos remover o "entulho autoritário". Nesse período, que nossos parâmetros aprenderam a chamar de democrático, incrementamos e diversificamos um vasto estoque autoritário e de tolerância à delinquência política. Essa estrutura institucional e doutrinária viabilizou Jair Bolsonaro. Seus dispositivos continuam vigentes.

A Constituição de 1988 ainda busca mais operadores que lhe façam justiça. Afinal, não basta um bom texto, bons valores, boa arquitetura. O constitucionalismo precisa de autoridades que abracem a missão com apuro moral e jurídico. Nossas Casas parlamentares continuam a ser, em índices de exclusão, comparáveis a países fundamentalistas. Nossas cortes também.

Nos gabinetes do Congresso, articula-se aprovação de leis cujo teor o STF já declarou inconstitucionais. Nos gabinetes do poder econômico, articula-se a inviabilização de medidas elementares de redução de desigualdades. Nos gabinetes do crime organizado, luta-se pela corrosão do Estado, fim da Amazônia e perpetuação da guerra às drogas.

Na hermenêutica dos porões, ensinada nas casernas, o artigo 142 autoriza militares a aplicar golpe de Estado. E as Forças Armadas, que não admitem a busca da verdade sobre mortos e desaparecidos, vão vencendo mais uma. Nunca perderam.

Na cúpula do sistema de Justiça, alastram-se a descompostura e a legalidade alternativa. Como aquela que permitiu ao procurador-geral da República pedir a prisão desse crítico. Pois não suportou a ironia. O caso foi mandado ao arquivo. O poste continua permitido.

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