Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu mídia Folhajus

A Jovem Pan nem pede desculpas

Emissora vende a democracia, mas não perde a piada

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A covardia bolsonarista desenvolveu estratégias de irresponsabilização pela delinquência. Acredita na legalidade cordial, cuja justiça ouve o coração e ignora a lei e a razão. Confia na tradição de antirrevanchismo e pacificação, esse recurso eufemístico para descrever perpetuação da violência de cima para baixo.

A percepção da gravidade das ações vai se esgarçando numa sociedade com preguiça de memória. As vítimas já morreram, seus porta-vozes já ninguém escuta.

A covardia bolsonarista adota alguns atalhos para descansar à margem da lei. O primeiro atalho pede "respeitosas escusas, só faço o bem". Sergio Moro popularizou o expediente. O segundo tenta nos convencer que o que disse ou o que fez "foi tirado de contexto". O terceiro solta um "foi brincadeira, não tive intenção". O "homo ludens", esse homem que brinca, povoou o bando do ex-presidente.

Nem sempre são alegações ilegítimas. Perdem credibilidade quando a magnitude e a vontade performática de violar norma jurídica ou social escancaram desfaçatez e dolo.

Repórter da Jovem Pan, em Brasília - Alan Marques - 1.set.15/Folhapress

A Jovem Pan, pedra de toque do esquema de comunicação conspiratória do governo anterior, não recorreu a esses atalhos para se eximir pelo que fez entre 2022 e 2023. Apesar de ter servido como megafone da estridência do ódio e da incitação, optou por silenciar.

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a emissora. Fez descrição e análise dos conteúdos veiculados pela Jovem Pan entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023. Identifica responsabilidades por abuso da liberdade de radiodifusão. Pede direito de resposta à coletividade, indenização por danos morais coletivos e cancelamento de três outorgas de radiodifusão. É registro para a justiça histórica e jurídica.

A ação do MPF demonstra que a Jovem Pan, concessionária de serviço público, está sujeita a regime particular de liberdade de radiodifusão. E, ao ter se engajado em campanha "sistemática e multifacetada" de desinformação, não apenas radicalizou a deliberação democrática com base em mentira, como incitou insurreição violenta contra Poderes constituídos.

Quem assiste a cronologia desses programas de rádio e TV e lê seus conteúdos identifica sintonia cronológica e discursiva com os incêndios em ônibus em Brasília por ocasião da diplomação de Lula pelo TSE (em 13 e 14 de dezembro de 2022), a tentativa de atentado a bomba em 24 de dezembro, as tensões nos quartéis e o ápice da insurreição em 8 de janeiro de 2023.

A ação judicial não faz apenas um inventário minucioso de infinitas declarações do dream team de comentaristas da emissora, cada uma delas suscetível a sanção jurídica individual. A sutileza de seu argumento está em demonstrar que o conjunto é maior do que a soma das partes.

Opiniões que, sozinhas, parecem deslizes exaltados, em conjunto constroem objeto ilícito de outro tipo. Daí que os adjetivos "sistemático e multifacetado" não são adereços retóricos, mas iluminam algo que à primeira vista não se vê. Uma costura que permite enxergar a floresta, não só as de árvores. Numa espécie de etnografia, extrai um fio da meada nesse emaranhado. Um tour de force intelectual.

O texto mostra como a Jovem Pan construiu, gota por gota, frase por frase, dia após dia, um caldo informacional e opinativo ficto, inventado. E que esse caldo se organizava em quatro objetivos: minar a confiança no processo democrático e deslegitimar autoridades; incitar desobediência à lei e a decisões judiciais; incitar a intervenção das Forças Armadas; incentivar a população à subversão.

A Jovem Pan buscou negociar ajuste de conduta. Nesta semana tivemos notícia de que a negociação fracassou. O MPF, que salientou não aceitar acordos com efeitos meramente prospectivos, pediu a retomada do processo e o recolocou na mesa da juíza. Ela tem a chance de conceder liminar que, pelo menos, reconheça o direito de resposta à sociedade.

A ação enfatizou que "por maiores que possam ser as promessas de conformidade e de melhoria para o futuro, o passado não se apaga e desafia providências legais severas, proporcionais".

A Jovem Pan parece tentar que seus graves ilícitos do passado saiam de graça. Basta fazer uma promessa de bom comportamento assinando um "é verdade esse bilete".

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