Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

O STF senta à mesa com empresários

E por coincidência esvazia a proteção constitucional da dignidade do trabalhador

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O Brasil, sozinho, tem 98% de todas as ações trabalhistas do mundo. Ministros do STF folgam 98% do tempo. Bancos financiam 98% das viagens de ministros do STF ao exterior. Ministros do STF são 98% técnica, 2% família. 98% dos brasileiros apoiam Alexandre de Moraes para a Presidência. 98% dos militares respeitam a lei e não acreditam ter última palavra na interpretação constitucional.

Essas frases falsas dariam boas manchetes na política do pânico e circo. Na democracia com déficit de atenção, a desinformação verossímil se espalha com mais força e facilidade do que a mentira voando abaixo do radar da verossimilhança. Ou talvez o contrário, a depender das inclinações de espírito da rede por onde navega.

Pois uma dessas frases foi dita por Luís Roberto Barroso, presidente do STF, anos atrás. Afirmou que o país tinha 98% das ações trabalhistas do mundo (do mundo) e prejulgou qualquer discordância: "Na vida devemos trabalhar com fatos, não escolhas ideológicas prévias." Sua frase, ironicamente, dizia mais sobre si mesmo do que sobre o mundo. Faltavam fatos, sobraram escolhas prévias. Falhava empiricamente e teoricamente.

Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) participam da conferência Lide Brazil, em Nova York, nos Estados Unidos
Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) participam da conferência Lide Brazil, em Nova York, nos Estados Unidos - Reproduçao - 14.nov.22/TV Lide no YouTube

Pronunciada numa palestra na Universidade de Oxford, em defesa da reforma trabalhista, cuja constitucionalidade viria a julgar depois, a frase não passou despercebida, nem foi inofensiva.

No relatório do senador Ricardo Ferraço, que defendeu a aprovação do projeto de lei, a frase foi citada como fundamento. O conteúdo da fala ajudava, mas foi ainda mais importante quem a enunciava. Barroso deu ao legislador um conforto constitucional, esse pré-juízo de constitucionalidade sobre a lei. Foi mais um sopro de apoio à reforma.

O episódio emblemático ilustra como ministros do STF têm participado, dentro e fora dos autos, na diluição dos direitos do trabalhador. Muitos foram defensores incondicionais de qualquer mudança sob a alcunha de "reforma trabalhista". Em algumas ações do STF, foram mais longe que a própria reforma e deixaram precarizar o que nem o legislador precarizou. Até elogios não solicitados à reforma foram redigidos nos votos.

Na pesquisa "STF como Justiça Política do Capital", Grijalbo Coutinho descreveu a transição do STF de "tribunal moderado-garantista" (1990 a 2006), que priorizou, por exemplo, o legislado sobre o negociado e bloqueou tentativas de terceirização de atividade-fim, a "tribunal ativista-conservador" (a partir de 2007), que autorizou terceirização generalizada, aceitou formas contratuais precárias e desarticulou fontes de custeio da atividade sindical.

Outros estudos apontam como o STF se deixou levar pelo ideário econômico que vê na proteção ao trabalhador um custo de produção, e aceita reduzir o direito do trabalho a contrato privado. Nessa relação, o trabalhador seria livre para se deixar explorar. Uma ideia pré-constitucional. Essa onda jurisprudencial ecoa a Era Lochner da Suprema Corte americana que, nos anos 1920, enxergou no regime de 18 horas diárias de trabalho nas padarias apenas liberdade dos padeiros.

Quando observamos o hábito normalizado de ministros de cortes superiores frequentarem eventos do Grupo Lide, Grupo Esfera, Fiesp, IDP ou qualquer grupo que cultive a alergia ao direito do trabalho, não surpreende que saiam convencidos de que o sofrimento a ser priorizado pelo juiz constitucional é o sofrimento do empresário. Ao se permitirem esse tipo de encontro exclusivo, também nos autorizam esse tipo de desconfiança.

Está na pauta do STF de 8 de fevereiro o julgamento de ação proposta pela Rappi Brasil. Decisões de tribunais regionais do trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho reconheceram vínculo empregatício na relação de trabalhadores de aplicativos de intermediação. Para a empresa, há apenas um "motociclista parceiro" livre para trabalhar. Por isso pede ao STF que deixe essa bonita relação contratual livre do direito do trabalho.

Pode ser o tiro último e definitivo num edifício de proteção ao trabalhador construído durante quase um século. Um pacto que merece ajuste e aperfeiçoamento, não extinção.

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