Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes

O filho do pai morto

Lula se curva a militares sem pedir nada em troca

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"Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora... Num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças."

"Eu te entendo, Migliaccio. Porque eu, como você, fui do Teatro de Arena. Era urgente que se pusesse a alma brasileira em cena. Depois, e é por isso que te entendo, veio 64. Ficávamos esperando a veraneio nos buscar. Agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68, agora quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais. Eu não tive a coragem que você teve. Mas espera aí, meu amigo, vou logo. Para os que ficam, quero lembrar uma das falas de Pedro Hackers, em Os Fuzis da Senhora Carrar: 'Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue'."

"Cara, ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70. Gente, vambora, vambora pra frente! 'Pra frente Brasil, salve a seleção. De repente é aquela corrente pra frente'. (rs) Não era bom quando a gente cantava isso? Vocês estão desenterrando mortos. Vocês estão carregando um cemitério nas costas. Vocês devem estar cansados. Fiquem leves. Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas. Vamos ficar vivos, por que olhar pra trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões."

Esse diálogo público foi travado em maio de 2020, por três astros do teatro e da TV brasileira: Flavio Migliaccio deixou carta antes de se suicidar; Lima Duarte homenageou o amigo em vídeo; Regina Duarte, secretária de Cultura, em outra dimensão, sorria na TV enquanto o Brasil da pandemia não tinha completado 10 mil mortes.

BRASILIA, DF, 19-04-2023 O presidente do Brasil Luiz Inacio Lula da Silva participa da comemoração do Dia do Exército na Concha Acústica do Exército Na imagem, com o comandante do exército, Tomas Paiva (FOTO Gabriela Biló /Folhapress) - Folhapress

Em outubro de 2022, na Paulista, Lula discursou após eleição: "De todas as vitórias que eu tive, essa é a vitória mais consagradora, porque derrotamos o autoritarismo e o fascismo. A democracia está de volta ao Brasil. A liberdade está de volta ao Brasil."

Enquanto isso, nos porões do Planalto, Jair Bolsonaro minutava com generais o desenho jurídico de um plano de golpe. A execução bem financiada e articulada caminhava nas estradas e acampamentos em quartéis até fracassar seu ato culminante, de 8 de janeiro de 2023. Bolsonaro conspirou com militares golpistas contra militares "cagões" (que, ao contrário de Braga Netto, preferimos chamar de "legalistas").

O golpe de 1964 completa 60 anos. Lula proibiu o governo de fazer qualquer ato de memória pelos milhares mortos, desaparecidos e torturados. Pelos militantes, jornalistas, professores, indígenas, pretos, trabalhadores.

Preferiu a leveza fúnebre e negacionista de Regina Duarte. Decidiu não olhar para trás nem "remoer o passado".

Enquanto isso, militares estão tacitamente autorizados a celebrar o "movimento democrático de 31 de março de 1964". Quem quiser, tem almoço de comemoração no dia 27 de março, às 11h30, na Sede Esportiva Lagoa do Clube Militar, Jardim Botânico, Rio de Janeiro. O buffet custa R$ 95. Só não se sabe se o Ministério da Defesa vai soltar, como em anos anteriores, Ordem do Dia sobre esse "marco para a democracia".

Como Regina, Lula não se dispõe a entender que esse passado é sobretudo presente e futuro, não só para os filhos e filhas de pais mortos por generais, mas também para a democracia que venceu as eleições por 1% de votos. Não é revanche, mas construção de horizonte. Nem mesmo o bolsonarismo essa democracia venceu.

Na relação abusiva que trava com generais, Lula não pede nada em troca. Entra na negociação para dar sem receber.

A sequência de concessões gratuitas não abandona só a ideia de refrasear o artigo 142 da Constituição de 1988. Pois não precisa deixar mais literal a regra de que Forças Armadas, em democracia constitucional, são burocracia subordinada a poder civil. Não têm autoridade superior para interpretar a Constituição, nem custódia da política.

Entre outras coisas, o governo impediu reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Nem a construção de museu de memória, nem mesmo discreta melhora nas cartilhas para forjar anticomunistas iletrados nas salas de aula de academias militares, Lula autorizou a fazer. E continuou a dar dinheiro. E não recebeu sequer um carinho de volta. Não bateu pé nem por um pirulito. Bateu continência. Lula se emocionou com vítimas argentinas, sequer atendeu familiares de vítimas brasileiras.

Se a estratégia de apaziguamento renuncia qualquer tentativa de democratizar instituição vocacionada para a ditadura, apazigua o quê?

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