Paulo José é a mãe. Vestido num camisolão surrado, o ator dá à luz Macunaíma. No papel do herói sem caráter, Grande Otelo se estatela no chão, nu e feioso, com os cabelos eriçados, como se tivesse levado um susto ao ver o mundo pela primeira vez.
A adaptação para o cinema da rapsódia de Mário de Andrade atualiza o mito indígena. Lançada em 1969, com direção de Joaquim Pedro de Andrade, mistura o deboche com sabor tropicalista à uma colorida crítica sociopolítica.
Ci, Rainha do Mato na versão do livro de 1928, é uma guerrilheira urbana no filme. O papel coube a Dina Sfat, linda como uma epifania. Ensanguentada na luta contra a ditadura, ela dispara sua metralhadora como se cada tiro fosse um slogan pop-marxista.
Macunaíma, agora interpretado pelo mesmo Paulo José, depois de se ver transformado em branco, apaixona-se perdidamente. "Amor primeiro não tem companheiro." Os dois se enroscam na rede vermelha e brincam até ele soltar o mantra, "ai, que preguiça", rindo-se um do outro com gozo infantil.
Se o livro é delirante, o filme transporta esse delírio para a crua realidade brasileira —sempre respeitando as leis da antropofagia.
Há cerca de dez dias, o berço de Macunaíma surgiu sombreado por essa realidade. "Garimpo em território yanomami teve Carnaval e bingo de revólver". O título da reportagem publicada nesta Folha adianta um pouco da história. A Polícia Federal fechou um dos garimpos ilegais na região, chamado Fofoca do Cavalo.
Mas há muitos outros. A terra dos yanomamis continua sendo sistematicamente devastada, assim como o rio Uraricoera, contaminado por alta quantidade de mercúrio. Para atravessar as águas outrora cristalinas, os índios são obrigados a pagar pedágio. Triste escárnio.
Foi nesse rio que nasceu o personagem de Mário de Andrade, cujo rosto, depois do filme, será sempre de Grande Otelo. Foi nas mesmas correntezas que ele morreu, engolido por um monstro. A imagem não poderia ser mais atual. "Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são." A recorrente frase no romance modernista diz tudo. A mitologia é fato: o Brasil devora o Brasil.
De carona no lado brincalhão de Macunaíma, Arnaldo Hirai criou seu coquetel com o nome do (anti) herói. Foi na Copa de 2014. Queria, segundo ele, fazer um drinque com características nacionais. Daí a cachaça, que o personagem, no livro, carrega sempre consigo e bebe tanto como alívio para o calor formiguento, quanto para se esquentar no frio paulistano.
O Macunaíma virou farol no bar de Hirai, o Boca de Ouro, em Pinheiros. Uma noite, em que estava lotado, aportou em seu balcão Simon Difford, uma das maiores autoridades mundiais em coquetéis. Sentou no banco alto e pediu a prata da casa. Deu ao drinque cinco estrelas em seu site.
Não teve tempo, infelizmente, de experimentar o chaparral, uma das novas atrações do bar, que hoje só atende por delivery. Talvez tenha comido um Valadão, sanduíche deliciosamente cafajeste, com copa longo desfiado.
A verdade é que, diante do aniversário nefasto do golpe que derrubou a democracia, dos desmandos do genocida e da contínua destruição da vida indígena, um Macunaíma, aquele da lenda, que desceu da montanha e afugentou os invasores, cairia bem. Como a Dina Sfat, sem preguiça.
MACUNAÍMA
Ingredientes
- 45 ml de cachaça
- 30 ml de suco de limão
- 25 ml de xarope simples (uma parte água para uma parte açúcar)
- 10 ml de Fernet Branca
Passo a passo
Bata os ingredientes com gelo e coe para um copo americano.
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