Uma alimentação saudável se faz entre aperitivos e digestivos, como bem sabem os mediterrâneos. Antes das refeições, o Campari com soda se destaca. Não por ser o melhor, ainda que seja muito bom, mas por ser o mais famoso.
Terço amargo do negroni, o bitter escarlate é do tipo ame-o ou deixe-o. Na Itália, onde surgiu em 1860, diz-se que é preciso três tentativas para que o libador incauto possa apreciá-lo. A primeira não faz tchan e a segunda não faz tchun. Na terceira ou quarta é que as luzes de Milão se acendem na cabeça.
"Campari é magia", diz uma personagem de "Os Cavalos de Tarquínia". O romance do início de carreira de Marguerite Duras mostra três casais em férias numa praia italiana. No estilo claro e experimental da autora, a história corre pelas conversas. São regadas a Campari, que os personagens tomam todos os dias. Se torcer o livro, dá para encher algumas garrafas.
Amor, maternidade, o calor, o sexo, o rapaz que vai aos ares ao pisar numa bomba, o mar, a amizade, o fetiche pelos barcos a motor, a traição e o ciúme são assuntos discutidos e vividos num tempo suspenso pela bruma vermelha do aperitivo.
Sensações e sentimentos, embotados pela tórrida temperatura, despertam quando o gelo toca a boca no primeiro gole. "Acredito muito no Campari", diz outra personagem. "O álcool preenche a ausência de Deus", escreve Duras em "A Vida Material".
A escritora falava do que conhecia de perto. Consumidora compulsiva de vinho e conhaque, bebeu até onde o fígado deixou. Chegou a ficar cinco meses em coma. Dois anos após o diagnóstico de cirrose, publicou seu romance mais conhecido, "O Amante", em 1984, um acerto de contas com o passado na Indochina (Vietnã). Aos 15 anos, foi empurrada pela família para os braços de um chinês rico. A ambiguidade da experiência, amarga e erótica, doce e violenta, marcou profundamente toda sua vida e obra.
Feminista a seu modo, teve de lidar com a incompreensão dos homens, que não equacionavam sua aparência frágil com o estilo franco de seus textos. Sua autoconfiança e intensidade sensual incomodavam, soavam fora de lugar, provocavam inveja.
Havia, claro, exceções. Beckett declarou que ouvir uma das peças de Duras no rádio mudou sua vida; Lacan, por sua vez, disse que ela antecipou intuitivamente suas ideias. E Resnais filmou "Hiroshima, Meu Amor", escrito por ela.
Duras tinha a consciência de que o alcoolismo numa mulher era bem menos aceito do que num homem - era algo "escandaloso", como se fosse "um animal ou uma criança bebendo." O próprio Campari sempre se direcionou mais aos homens em suas propagandas, nas quais eles são invariavelmente seduzidos por mulheres deslumbrantes.
Nos anos 1970, Humphrey Bogart oferece a bebida com soda para uma sereia dos bares, num ambiente que reproduz as cenas de "Casablanca". Depois foi a vez de Fellini, que certamente precisava de dinheiro para pagar as contas. Ele dirigiu um comercial de Campari que se passa num trem onírico. Recentemente, Paolo Sorrentino, de "A Mão de Deus" realizou para a marca um curta-metragem com Clive Owen de barman.
Nada que se compare a alguns diálogos em "Tarquínia". "Tem coisas que não gostamos logo de cara, mas que aos poucos nos dão prazer, até mesmo ao ponto da necessidade." Para Sara, figura central, o "Campari faz com que tudo fique menos urgente."
MILANO TORINO
Ingredientes
- 45 ml de Campari
- 30 ml de vermute doce
Passo a passo
Mexa suavemente os ingredientes num copo old-fashioned com gelo. Decore com uma rodela de laranja.
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