Aldir Blanc e João Bosco cantaram a cachaça e o Almirante Negro

"O que trazes aí?" Voltando de uma farra boa, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes carregava consigo duas garrafas de cachaça. Logo viu que estava em maus lençóis —era impossível passar batido pelo olhar sanguinário do vigia.

Preso a correntes no convés, recebeu uma punição muito desproporcional ao delito de lesa-sobriedade, que no entanto era inadmissível para a Marinha. As 250 chibatadas em suas costas foram testemunhadas pelos demais marujos do encouraçado Minas Gerais, ancorado na baía da Guanabara.

Assim eclodiu a Revolta da Chibata, em novembro de 1910. Vinha sendo planejada há meses. Era uma questão de honra, de sobrevivência, de defesa dos direitos de acabar com um castigo que lembrava a escravidão, abolida havia apenas 22 anos. Quase todos eram negros e mestiços.

João Cândido, líder dos insurgentes, também conhecido como Almirante Negro, ficou imortalizado na letra de Aldir Blanc: "Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais."

Perdeu, porém, a "dignidade de um mestre-sala" ao atirar na mulher, por ciúme, de acordo com Ruy Castro, em "Metrópole à Beira-Mar". A inconsciente vontade de errar ou a mira ruim evitaram um final muito pior: ela sobreviveu com alguns arranhões e ele, mais uma vez, ficou a ver navios e o sol quadrado.

Já tinha sido preso (e torturado), depois do motim, ao ser traído pelo governo federal, que não cumpriu o acordo de cessar-fogo. Luta inglória, deveras, mas que "não esquecemos jamais". Curiosa nota de rodapé: cinco anos antes da rebelião, tentou contrabandear uma garrafa de cachaça para bordo. Foi castigado no bolso, tendo o soldo cortado, conta o site Devotos da Cachaça.

Outro apreciador do mé louvado por Mussum era o bamba Carlos Cachaça. É dele a linda "Alvorada", feita em parceria com Cartola (que curtia um conhaque) e Hermínio Bello de Carvalho. Um dos fundadores da Mangueira e mestre da malandragem, recebeu o codinome pelo motivo óbvio: nas rodas de samba, preferia a cachaça à cerveja, tomada pela maioria dos circunstantes. O Dia do Samba, aliás, é comemorado neste 2 de dezembro.

Já a alcunha de Caninha, amigo e rival de Sinhô nos primórdios do samba, não se deve à "amiga do povo", como muitos pensam, mas porque vendia roletes de cana quando garoto. De qualquer forma, era também um devoto da mardita. Estava sempre nas festanças na casa da Tia Ciata, berço da cadência bonita, ao lado de Pixinguinha, Sinhô e Donga. (Essas e outras histórias estão no livro de Roberto Moura, "Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro".)

Era tanta pinga, que o abacateiro do quintal ficava pelado "pois as folhas lhe eram arrancadas para curar a bebedeira", revela o crítico José Ramos Tinhorão, em "Música e Cultura Popular".

Gênio da lírica bem-humorada do samba, Aldir Blanc não ficou só na "glória à farofa, à cachaça, às baleias", no que tange à imperatriz dos botecos. Em "Parati", o parceiro João Bosco canta: "Eu fui me encher de cachaça. Cada um tem sua receita, morena, pra combater a desgraça." Já o personagem Anescar, em "Siri recheado e o cacete" se livra da bronca: "O médico mandou que eu coma tudo o que pintar/até cerveja e cachaça/menos os frutos do mar."

Santo remédio.

LAVARELLO (Receita de Márcio Silva)

• 40 ml de cachaça branca
• 20 ml de Aperol
• 10 ml de Cynar
• Uma espirrada de Angostura

Passo a passo
Mexa os ingredientes com gelo e coe para um copo baixo com gelo grande. Decore com uma casca de laranja.