Em 40 anos de vida, não faltaram desafetos para Edgar Allan Poe. Houve o pai adotivo, com quem nunca se acertou, mas que lhe deu o "Allan" no meio do nome. Houve Longfellow, poeta famoso em sua época, que Poe costumava espinafrar nos jornais. E houve Rufus Griswold.
Esse foi talvez o pior. Crítico enciumado, não engoliu os reparos que o autor de "O Corvo" fez à sua antologia de poetas americanos —na qual Poe estava incluído. A gota d'água foi a disputa pela atenção de uma bela poeta. Poe era suscetível à beleza das mulheres, vivas ou mortas, às quais dotava, nos textos, de palidez sepulcral, entre outros atributos de erotismo gótico.
Os encantos da garrafa, do jogo e do ópio, possíveis motivos de sua expulsão da universidade e da academia militar, também o seduziam. Quando morreu, em circunstâncias misteriosas, num vórtex de delirium tremens, quis o destino que Griswold fosse o executor de sua obra.
Tal como o vingativo Montresor de "O Barril de Amontillado", ele aproveitou a ocasião para tentar emparedar a reputação do poeta e contista. Tal como um gato preto ou o pulsar enlouquecedor de um coração, a obra falou mais alto e acusou a malfeitoria.
Quem assistiu a "A Queda da Casa de Usher", num clima de Halloween sofisticado, reconheceu os nomes de Longfellow e Griswold, dois dos piores vilões da série, miscelânea de enredos e versos do mestre de Baudelaire, tendo como espinha dorsal o conto que lhe dá título, numa versão livre e contemporânea.
O primeiro é o pai poderoso, chefão da empresa Fortunato, que não reconhece os filhos —Madeline e Roderick— e destrata a mãe deles, Eliza (nome da mãe de Poe, que também morreu cedo).
Griswold é o sujeito cafajeste que assume a direção da Fortunato. Na festa de ano novo, se atrapalha numa degustação de jerez. A coroa cai, ele é agora um bobo da corte, balançando seus guizos tropegamente. E pensar que se dizia um connaisseur, comenta Madeline, com sarcasmo gélido.
As bebidas inundam "Usher", fontes de esquecimento ou mitigação de culpas. No permanente diálogo entre Roderick e Auguste Dupin, promotor que passa décadas tentando enquadrar o império da família, construído sobre um opioide viciante e mortal, os copos de linhas elegantes carregam um conhaque lendário, guardado numa garrafa cravejada de brilhantes.
Dupin, como todos os personagens —Próspero, Lenore, Annabel Lee etc.—, é nome tirado das histórias extraordinárias de Poe. Protagonista de "Os Crimes da Rua Morgue", ele é o primeiro detetive da literatura.
O conhaque é o mesmo oferecido aos gêmeos num bar fantasmagórico, 40 anos antes. A bartender fatal, no sentido universal da palavra, chama-se Verna, um anagrama de Raven, o corvo tão cantado do escritor de Boston. Aqui, o grasnado "nunca mais" soa como um sensual, ainda que assustador, "tarde demais". A conta já está paga.
A família de Poe tinha sua própria receita de egg nog, drinque popular no século 19. Mistura improvável, pode ser um bom remédio para memórias torturantes e o medo de abismos que se abrem. Não estranhe se ouvir um farfalhar de asas e uma voz quebrada, dizendo: "beba mais".
EGG NOG
45 ml de conhaque
15 ml de rum escuro
Uma gema de ovo
Meia colher de sopa de açúcar
20 ml de leite integral ou creme de leite
Aqueça o leite e bata todos os ingredientes a seco numa coqueteleira. Coe para uma caneca de vidro e finalize com noz moscada. A versão com gelo também é boa.
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