Gelo e gim

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A sidra em Annie Ernaux, como marca da memória

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Passadas as eleições, familiares de esquerda voltam a enfrentar familiares de direita em almoços de domingo. Sob o tênue véu afetuoso, a piada do pavê já perdeu a inocência e qualquer elevação de voz ou gesto brusco gera tensão.

Os livros de Didier Eribon, Édouard Louis e Annie Ernaux, três franceses do norte, tratam, a seu modo, desses conflitos à mesa, num misto de auto ficção, romance de formação, história e sociologia.

mulher em casa
Cena de 'Os Anos do Super 8', documentário dirigido por Annie Ernaux com seu filho, que vai passar na Mostra de São Paulo - Divulgação

Como Saramago, Annie Ernaux chegou até o Nobel de literatura por um longo caminho, que começou numa cidadezinha no campo, em uma família da classe operária. Também como o autor português, ela se colocou entre os temidos comunistas.

Em "O Lugar" (Fósforo, tradução de Marília Garcia), relato magnífico de sua relação com o pai rude e conservador, Ernaux menciona uma das muitas fronteiras entre o proletariado e a burguesia: a sidra. Em comparação com o champanhe, ou mesmo o vinho, o fermentado de maçã costumava ser rotulado como bebida menor.

A escritora conta como a Primeira Guerra mudou os hábitos do seu vilarejo: "passaram (...) a tomar vinho nos cafés em vez de sidra. Nas festinhas, as moças já não gostavam dos rapazes que trabalhavam nas fazendas, pois eles sempre exalavam um cheiro forte." No parágrafo seguinte, ela fala de como o pai conheceu o mundo no exército e de como "teve a oportunidade de trocar por uma prótese seus dentes estragados pela sidra."

As associações que faz com a bebida, comum em festas de casamento no interior do Brasil, remontam ao tempo de mecanismos puxados por cavalos. A tradicional fermentação espontânea continua em uso, como na produção dos hoje badalados vinhos naturais.

De forma mais ampla, Ernaux mostra como os hábitos dos pais, trabalhadores na roça, em fábricas e por fim num café-mercearia próprio, tornaram-se motivo de estranhamento junto à classe culta que a absorvia. Incomodava-se que o pai não soubesse discutir, ou como ele comia e falava, sempre aos resmungos. Em troca, o pai a achava preguiçosa por só ler. Como lidar com isso?

De fato, por séculos foi difícil imaginar alguém com o nariz enfiado numa taça de sidra, para em seguida aspirar ruidosamente, bochechar por todas as papilas e dar seu veredito.

A sidra se bebia até no café da manhã. Era a poção de cada dia das fazendas normandas, algo muito banal e por isso desvalorizado. Na França existe até a expressão "isso não vale um copo de sidra". Em Proust, Madame Verdurin exibe o esnobismo ao dizer que o marido é "indiferente ao luxo" e afeito a uma garrafa de sidra qualquer. Leopold Bloom queixa-se de gases depois de tomar o fermentado de maçã, em "Ulisses".

Claro, a Gália de ontem e hoje também tem seus surrados tintos de mesa ou garrafão. Com a diferença que algumas garrafas de vinho, conhaque e champanhe chegam a custar fortunas.

(É preciso dizer que o Calvados se produz com a destilação da sidra e está entre as bebidas mais refinadas do mundo. Mas esse é outro capítulo. Hoje existem sidras sofisticadas, que aparecem nas cartas de grandes restaurantes.)

Maior estrela desta Flip, Ernaux cita Sartre em "Os Anos": "existir é beber a si mesmo sem sede." Em nosso caso, a frase poderia ser: "suspender a existência é beber com gosto". Sidra, do jeito que for.

O drinque Le Premier Word
O drinque Le Premier Word - Divulgação

LE PREMIER WORD

Ingredientes

  • 30 ml de sidra
  • 30 ml de gim
  • 22 ml de Chartreuse Verte
  • 7 ml de suco de limão-siciliano

Passo a passo
Bater os três primeiros ingredientes com gelo e coar para um copo old-fashioned com gelo. Completar com sidra e uma casca de limão.

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