Paris, 1937. Picasso olha para o alto e comenta: "Que lindos são os gigantes soviéticos contra o fundo lilás do céu." O pintor estava se referindo à escultura "Operário e Mulher Kolkosiana", de Vera Mukhina.
Uma figura segura a foice, a outra o martelo. A postura aerodinâmica dos corpos e o vestido esvoaçante, associados ao posicionamento em relação ao Sol, davam a sensação de estarem voando.
Com 25 metros de altura, feita de aço e ideologia, a obra foi montada no topo do pavilhão soviético na Exposição Universal. Representando a Espanha, estava a "Guernica" de Picasso, com os estilhaços cubistas da Guerra Civil Espanhola, então em curso.
De família rica, Mukhina aderiu à Revolução de 1917 e tornou-se a maior escultora no país de Lênin e Stálin. Alheia aos censores, manteve o estilo vanguardista, mas também assumiu compromissos com o realismo socialista.
Inquieta e criativa, atuava em muitas frentes, dentre elas o design. Ainda que não esteja nos livros oficiais, foi muito provavelmente ela quem criou o copo do povo, em 1943, usado até hoje tanto para o café quanto para a vodca. E para o leite, a cerveja, o refrigerante etc.
Multiuso, o copo também era anti-desastre: como tinha sulcos ao redor e um corpo sólido, dificilmente caía da mão de quem o usasse, por mais bêbado ou distraído que estivesse. A forma tinha outra função: cabia perfeitamente na máquina de lavar-louças usada no país na época.
Com capacidade para 190 ml, era peça fundamental no soobrazit na troikh, ou arranjo para três. Isso especialmente depois que o governo Khrushchev proibiu a venda de vodca na torneira (!) e em pequenos frascos.
Assim, aqueles que quisessem se embebedar, juntavam-se em trios e faziam uma vaquinha para a garrafa de 500 ml, única disponível no mercado. Custava cerca de 3 rublos e cabia certinho na divisão para três copos de Mukhina. Daí era só abrir a torneira da conversa fiada: Tolstoi ou Dostoiévski? Prokofiev ou Shostakovich? Ops, acabou a garrafa, alguém tem um rublo?
Por ironia, o copo soviético, como era chamado nos EUA (soviet glass) ressurgiu no Brasil em 1947 com o nome de copo americano. Isso porque era produzido com um maquinário do Tio Sam. O empresário mineiro Nadir Figueiredo assumiu e patenteou a criação. Houve plágio? Nunca saberemos. Mas as semelhanças são imensas, além da proximidade de datas.
Dito isso, o copo de Nadir, fez sua estreia no bairro boêmio Lagoinha, em Belo Horizonte, "reduto de seresteiros, dançarinos e amantes da noite", e logo se tornou "o copo nosso de cada dia", como dizia a propaganda. Foi santificado e virou padroeiro da brasilidade cotidiana, uma onipresença entre a média matinal e o happy hour.
Sorridente a todos os líquidos, o copo lagoinha, assim chamado pelos mineiros, foi parar no MoMA, como exemplo do design brasileiro. E, num loop digno da série "Corpos", passou a ser de fato americano, desde que uma empresa made in USA comprou a Nadir Figueiredo.
Caipirinhas ficam bem confortáveis na versão baixa e larga do copo. Ou batidas. "A arte do rabo de galo", de Luiz Lobo e Leopoldo Adour da Câmara, manual inestimável, traz algumas delas. A batida de caju, por exemplo, cuja receita reproduzo ao lado, em toda sua deliciosa brejeirice.
BATIDA DE CAJU
"Duas talagadas de cachaça
a colherinha de açúcar,
meia dose de gim
e uma de suco de caju fresco.
Bate, que bate.
Sirva."
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