Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim
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O dilúvio de cerveja, a santa e o lúpulo

Casas foram destruídas e, amarga ironia, um pub foi varrido do mapa em tsunami de cerveja

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Noah Harris acordou no meio da tarde. Vestiu-se e foi até a porta alisando a barriga. Antes de sair, acendeu um charuto que tinha encontrado na rua. Alguém gritou de dentro da casa. Não tomou conhecimento e adiantou a perna para fora. VRAM! Foi atropelado por uma onda de um líquido escuro, de quase dois andares de altura.

Conseguiu ir à tona e deixou-se levar, enquanto via as casas pobres do bairro londrino de St. Giles passarem em alta velocidade. Acabou bebendo daquela poção que irrigava a cidade. E quanto mais bebia, mais perdia a noção da gravidade do que acontecia. Sentia-se um tritão —e, pasme, sorria do alto da crista espumante. Estava à vontade naquele dilúvio. Era cerveja! Mais precisamente um milhão e meio de litros de cerveja porter.

Funcionários da empresa responsável pelo desastre, ocorrido em outubro de 1814, não perceberam que o anel de ferro em torno de um tonel de sete metros havia se deslocado. Quando arrebentou, a cerveja explodiu com tanta força que derrubou os demais barris da cervejaria e abriu um rombo na parede.

Um close up de uma taça em uma mesa
Rick Barrett/Ambitious Studio/Divulgação

Os que estavam no mood do ficcional Harris, alegremente munidos de baldes para abastecer suas despensas, ou enchendo a lata como se fora o fim dos tempos, eram minoria. Um tsunami de cerveja continua sendo um tsunami. Muitos no bairro eram imigrantes irlandeses sem posses, forçados a viver em porões. Alguns afundaram literalmente na bebida. Casas foram destruídas e, amarga ironia, um pub foi varrido do mapa.

A coisa foi tão bizarra que muitos acreditavam ter sido obra do Todo Poderoso. O argumento bíblico desceu redondo para a cervejaria, que foi isentada pelo tribunal. O que se há de fazer quando Deus tem sede e abre torneiras descomunais?

Monja beneditina, precursora do feminismo e da ecologia, teóloga, dramaturga, compositora e botânica, santa Hildegard von Bingen foi uma das poucas mulheres a furar o bloqueio misógino da Idade Média e ganhar o merecido respeito e admiração em vida. Fervorosa, tinha espírito prático nas coisas terrenas, com ideias progressistas sobre o papel das mulheres e o sexo, recusava-se, por exemplo, a reconhecer a culpa de Eva pelo pecado capital.

Entre muitos dos seus feitos, está o de aconselhar o uso de folhas de lúpulo para preservar a cerveja, num dos primeiros textos em 1067. Pode-se dizer que ela foi fundamental na fermentação da ideia. Nem se sonhava, então, com o uso comercial do gelo, que ainda iria demorar mais de 800 anos.

Von Bingen, que enxergava Deus como uma mãe amamentando a criação, já alertava para os danos causados pela insanidade do homem à natureza —vê-se, portanto, que ela não atribuía a Deus a responsabilidade por todos os acidentes.

Frente a fatos e mistérios, a monja alemã tinha um pensamento holístico: para ela, as partes e o todo estavam ligados organicamente, o universo era um corpo integrado. Não se surpreenderia, provavelmente, com a crise climática —de resto responsável pela queda na produção de lúpulo.

Hildegard von Bingen deveria ser mais festejada —inclusive sua linda música sacra. Para brindar a ela, sugiro esse martini com a cerveja no lugar do vermute. A proporção de ale é baixa, que é para ficarmos espertos.

MANTINI

• 75 ml de gim

• 15 ml de cerveja British bitter ale (de acordo com o guia Difford’s)

Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça martini gelada

Finalize com uma azeitona

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