Daniel Furlan

Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

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Daniel Furlan
Descrição de chapéu

No azar

Playgrounds azulejados, desenhos interrompidos e sonhos mal-interpretados

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Por volta dos oito anos fui colocado na terapia. Eu basicamente desenhava, contava sonhos e comentava borrões, então se não chegava a ser divertido, pelo menos não trazia aborrecimentos.

Quando me mudei para o Rio de novo, lá pelos onze ou doze, troquei de analista, um senhor que me pedia desenhos e nunca me deixava terminar, já que as sessões relâmpago sempre acabavam antes. “Tá ótimo assim.” Mas eu não terminei. “Tá ótimo”.

Os sonhos também perderam a graça. Todas as interpretações giravam preguiçosamente em torno de separação dos meus pais. Sonhei com um golfinho pulando numa piscina. “Esse golfinho era moreno? Parecido com seu pai?” 

O Rio de Janeiro como um todo me parecia sem graça. As crianças de prédio não ficavam na rua, tudo girava em torno do tal do playground, que tinha um nome promissor mas na realidade era apenas um chão de azulejo, não tinha nada de play, era apenas um ground angustiante.

Num desses dias de tédio absoluto em meio a playgrounds azulejados, desenhos interrompidos e sonhos mal-interpretados, decidimos eu e meus coleguinhas cometer um ato de rebeldia. Fomos até uma farmácia e colocamos brincos. Não havia piercings, pelo menos não que soubéssemos, então se você quisesse desafiar o sistema, um farmacêutico tinha que literalmente te dar um tiro na orelha. 

Curiosamente, meu psicanalista se demonstrou bastante incomodado e perguntou, entre outros disparates, se eu não achava que era coisa de mulher, e pediu para que eu chegasse perto, tentando girar a tarraxa para tirar o brinco. Felizmente, a mecânica pré-histórica da tarraxa de farmácia não era tão fácil de lidar e, quando reclamei algumas vezes que estava machucando, ele finalmente desistiu e me pediu para fazer um desenho.

Minha vontade era desenhar seu corpo em decomposição devorado por dinossauros, mas devido ao tempo de consulta sempre tão escasso e por não saber desenhar dinossauros tão bem, acabei fazendo apenas seu corpo em decomposição. “Esse sou eu?” Claro que não —menti.

Ilustração de Cynthia Bonacossa para coluna de Daniel Furlan de 12.ago.2019
Ilustração de Cynthia Bonacossa para coluna de Daniel Furlan de 12.ago.2019 - Cynthia Bonacossa

No dia seguinte, já dito e aceito em casa que não voltaria ao consultório, ainda tive que receber um telefonema e escutar seu discurso sobre por que eu deveria voltar, ao que respondi algo do tipo mas eu não quero então tá tchau. E assim, aos doze, me dei alta da análise.

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