Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu machismo

'Censura do bem' chegou com força ao Brasil

Na busca pela purificação coletiva, novos evangelistas só confiam na própria consciência

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José De Paula Ramos Jr., professor do curso de editoração da ECA-USP, dedica-se a (re)descobrir e oferecer ao público textos literários de qualidade que foram esquecidos pelo mercado editorial.

Na disciplina que ministra, orienta o trabalho dos alunos na edição dessas obras para publicação pela parceria Com-Arte/Edusp, na coleção Reserva Literária. Contudo, o romance que selecionou no semestre em curso não chegará às livrarias. Motivo: os alunos julgaram a obra culpada de crimes de preconceito.

"Romance Tropical", de 1944, foi escrito por Théo-Filho, autor que fez sucesso antes da Guerra Mundial mas, depois, saiu do radar das editoras.

Os alunos, do segundo ano de graduação, decidiram conservá-lo no exílio literário pois identificaram passagens "sexistas" e "machistas", além de outras pouco respeitosas com religiosidades afro-brasileiras e católica.

O romance será editado, como trabalho acadêmico, mas não publicado. Todos ficarão protegidos da palavra desviante.

O caso poderia ter ocorrido nos EUA, pátria da "censura do bem". A moda, porém, chegou com força ao Brasil, importada pelas políticas identitárias.

Inconformado, De Paula experimentou diversos argumentos. Vocês censurariam as obras libertinas do Marquês de Sade? Proibiriam "Lolita", de Nabokov? O que fariam com Monteiro Lobato? O cinto de castidade da moral deve cingir a literatura, a estética?

Finalmente, sugeriu salvar a publicação pela adição de notas editoriais inscrevendo as passagens heréticas no contexto das atitudes e preconceitos da época. Nada: os novos evangelistas não admitem conciliações. "Estamos diante da cultura a-histórica do cancelamento", concluiu De Paula.

O herói de "Romance Tropical" é um contrabandista de madeiras nobres e um invasor de terras —mas isso passou incólume pela censura dos alunos. A caneta vermelha tem, exclusivamente, alvos identitários.

Comporta-se, no fundo, como a dos fundamentalistas religiosos, invertendo apenas os sinais da virtude e do vício.

Censura é, antes de tudo, um julgamento sobre a inteligência dos outros. Ao vetar a obra, os jovens estudantes de editoração dizem que a sociedade não é constituída por cidadãos plenos, mas por idiotas incapazes de datar as ideias, distinguindo passado e presente.

A implicação é que a democracia não funciona: um poder intelectual superior –no caso, eles mesmos– deve traçar um círculo de giz em torno das ideias proibidas. Quantos milhares de livros os "censores do bem" terão que queimar numa fogueira purificadora até completar a tarefa da limpeza das almas?

Os alunos não são pioneiros. O "Index Librorum Prohibitorum" da Igreja Católica sedimentou-se após o Concílio de Trento, sob Pio 4º, em 1564.

Sua versão derradeira, de 1948, vetava a leitura de cerca de 4.000 obras, inclusive de Dante Alighieri, Kant, Locke, Maquiavel, Stuart Mill, Gibbon, Victor Hugo e John Milton.

O objetivo era evitar a corrupção da moral e a contaminação da fé. Os livros proibidos foram rotulados como heréticos, imorais ou libertinos. Os evangelistas da ECA operam com critérios similares, apenas adaptados à sua religião secular.

A literatura, como as demais artes, reflete a experiência humana, nas suas dores e delícias, nos seus caminhos retos e, principalmente, nos seus tortuosos desvios.

A busca pela purificação coletiva empreendida pela turma que censurou "Romance Tropical" é uma tácita declaração de guerra à cultura. Os jovens censores não se engajam na ampliação das estantes, pela produção de textos novos, mas na rarefação das bibliotecas, por meio do extermínio de textos antigos.

O Index da Igreja foi abolido em 1966, quando a Congregação para a Doutrina da Fé entregou à consciência dos fiéis a decisão sobre quais livros precisariam ser evitados. Os novos evangelistas não concordam, pois só confiam na própria consciência.

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