Denise Mota

Jornalista especializada em diversidade, escreve sobre quem vive às margens nada plácidas do Ipiranga, da América Latina e de outras paragens

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Vice-presidente da Colômbia desafia o vazio em documentário

'Igualada', sobre Francia Márquez Mina, tem última exibição no É Tudo Verdade nesta quinta

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Contra o senso comum e a lógica semântica mais imediata, "igualada", na Colômbia, tem sentido negativo. O termo, que, a partir de seu radical verbal, indicaria algo ou alguém que se tornou (ou é) igual, que se encontra em um mesmo nível de outros, é utilizado na linguagem coloquial dos colombianos para definir um "atrevido" —e algo mais.

"Igualada" é uma expressão pejorativa, que costuma ser usada por uma pessoa de "classe alta" para se referir a outra de "classe baixa" quando considera que esta assume uma atitude que não lhe corresponde, me conta um amigo jornalista de Cali. Em bom português, aquela que "não sabe qual é o seu lugar".

Não por acaso, esse também foi um dos principais epítetos dados à vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez Mina —e o título do documentário sobre sua trajetória, que tem última exibição paulistana nesta quinta-feira (11), dentro do festival É Tudo Verdade. A sessão acontece às 16h, na Sala Lima Barreto do Centro Cultural São Paulo.

O filme, dirigido por Juan Mejía Botero, descreve a meteórica e arriscada ascensão de Márquez, contada majoritariamente em primeira pessoa. Ali se desvelam, sem meios-termos, as maiores tragédias que afligem nosso continente: pobreza, racismo, classismo, machismo, desigualdade, falta de cidadania seletiva, violência, mediadas por apatia ou conivência institucional.

A vice-presidente da Colômbia Francia Elena Márquez Mina em cena do documentário 'Iguala'
A vice-presidente da Colômbia Francia Elena Márquez Mina em cena do documentário 'Igualada' - Divulgação

Exibido no festival de Sundance no início deste ano e com previsão de estreia no circuito comercial colombiano em agosto, "Igualada" recupera um percurso de 13 anos na vida da política. Desde que era uma jovem líder comunitária no departamento de Cauca, em 2009, onde foi personagem central na luta contra a mineração ilegal e violações a direitos humanos, até tornar-se referência local, e depois internacional, na defesa ambiental. De figura política emergente a integrante da chapa com Gustavo Petro, que terminaria vencedora nas eleições de 2022.

Nos muitos palanques em que esteve, Márquez, ao se dirigir às mulheres, especialmente negras e indígenas, aos jovens, à população rural e à comunidade LGBT, ocupou o vazio em que costuma se encontrar a representação de setores dupla ou triplamente marginalizados. Uma posição que gera estranhamento e rechaço —ainda mais em espaços de poder—, fenômenos fartamente analisados por diversos autores interessados nas manifestações da discriminação em chave interseccional.

Em "Memórias da Plantação", por exemplo, Grada Kilomba escreve sobre o "racismo genderizado" e observa que a linguagem tem "uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade". Explica que, "no fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente sobre quem é 'normal' e sobre quem é que pode representar a 'verdadeira condição humana'". Sobre quem pertence ou não ao debate público e à esfera de tomada de decisões. Sobre quem é uma representante legítima, e não uma "igualada".

Durante um dos recorrentes enterros coletivos de jovens negros mortos em massacres sem resolução nem atenção, em 2020, Márquez conta que teve o estalo para começar um projeto político. "Quem chora nossos mortos?", canta, ao lado de mães com rostos dilacerados pela dor. Impossível que a sequência, vertiginosa e potente em sua desamparada sobriedade, não ressoe com o flagelo naturalizado de milhares de brasileiras que veem seus filhos sendo assassinados diariamente.

Daí em diante, a união (incômoda) com o Pacto Histórico de Petro —"com quem não estamos totalmente de acordo, mas temos similitudes"—, a chuva de mensagens racistas que aumenta dentro e fora das redes sociais à medida que seu nome se consolida, a retirada da família do país durante a campanha, por orientação da sua equipe de segurança, pincelam outros desafios que a acompanham.

É de rigor destacar que "Igualada" mostra as origens, lutas e decisões da vice-presidente sem artificialismos. Mas, para além do impressionante caminho percorrido por ela —"desde a resistência até o poder", como define—, é o abandono incontornável dos que continuam à margem, das cidadãs de segunda classe que não se tornaram "igualadas" e dos ativistas sociais que terminaram assassinados o pano de fundo demasiado familiar que faz do documentário um retrato difícil de sair da cabeça.

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