Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Desigualdades

Voto é essencial para combater desigualdades

Práticas como racismo, homofobia, escravidão só passaram a ser coibidas pelo Estado após a reflexão crítica produzida pela política democrática

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

João Feres Jr.

É cientista político e coordenador do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) e do OLB (Observatório do Legislativo Brasileiro)

Quando hoje lemos o nome dessa coluna, Desigualdades, presumimos que se trate de um espaço no qual problemas sociais importantíssimos são tratados. Mas nem sempre nos ocorre com clareza a profunda conexão entre as desigualdades e a democracia. A maior parte das pessoas reconheceria que a existência de desigualdades é prejudicial a esse regime político, mas as razões disso muitas vezes ficam nubladas por um senso de condenação moral difuso.

É importante, contudo, identificar as conexões entre uma coisa e outra. Aplicando de saída o método histórico para desnaturalizar o presente, constatamos que a rejeição moral das desigualdades só pôde ser articulada com convicção no Ocidente a partir da Era das Revoluções. No Brasil, então, que esticou a legalidade da escravidão até 1888, as desigualdades passam a ser um problema social e político bem mais tarde.

Ato contra o racismo e desigualdade na avenida Paulista, na região central de São Paulo - Bruno Santos 13.mai.21/Folhapress

A democracia que vem se implantando ao longo desse processo histórico superou em muito a noção de igualdade dos direitos civis, protegidos formalmente pelas constituições liberais mundo afora, avançou para uma democracia política com a universalização do sufrágio e, a partir do final do século 19, começou a se tornar também uma democracia social. Essa expansão do princípio da igualdade sobre as esferas civil, política e social, fez com que as desigualdades pudessem ser crescentemente problematizadas em contextos democráticos.

Com as lutas por reconhecimento da diversidade cultural, a partir de meados do século 19, alguns intérpretes identificaram o surgimento de um quarto tipo de direitos democráticos, os direitos da diferença cultural, enquanto outros viram aí uma expansão da democracia social por meio da significação do "social" para além do meramente econômico.

De uma forma ou de outra, é inegável ver aí novamente a operação do princípio da igualdade. Não é coincidência que a maioria das demandas por direitos democráticos assuma a forma da rejeição da discriminação, em outras palavras, do tratamento desigual: "é injusto que sejamos discriminados por termos esse sotaque, essa origem nacional, essa religião, essa orientação sexual etc.". Mesmo as demandas por reconhecimento de valores culturais estritamente falando têm a igualdade como horizonte normativo: "se a cultura dos homens, brancos, europeus, heterossexuais etc. é valorizada, por que não a nossa?"

A maior parte das demandas de grupos e movimentos sociais nos dias de hoje clama por intervenção do Estado. Para além de seu apelo moral mais geral, feito a todos que ouvem suas demandas, quando um grupo X reclama por um direito, ou aponta uma desigualdade, ele de fato está demandando ao Estado ações que coíbam ou mitiguem aquele problema. E essas ações estatais, leis e políticas públicas, para funcionarem, devem ter a capacidade de regular procedimentos institucionais e comportamentos sociais.

Nesse caminho de evolução mencionado acima, que é moral e institucional, o regime liberal criado pelas revoluções da virada do século 19 só ser tornou de fato democrático com o avanço do sufrágio universal. A garantia de direitos iguais para poucos é uma fórmula aristocrática. É só quando a opinião dos muitos passa a pesar nas escolhas públicas que podemos realmente falar da volta da democracia, forma de organização política abandonada pelos humanos por dois mil anos. É só por meio do fato político do voto do cidadão que o Estado volta a ser a expressão dinâmica da vida coletiva.

É triste notar que uma atitude de desconfiança e desdém pelo Estado viceja não somente entre os conservadores, anarquistas e liberais econômicos, mas inclusive entre setores da esquerda, em nosso país e no mundo. De fato, a história dos séculos 19 e 20 está repleta de exemplos de opressão estatal. Mas se o Estado é democrático, ou seja, se a regulação estatal é desenhada por representantes eleitos que rotineiramente se submetem ao procedimento de escolha popular por meio do voto, então ele não deve ser temido, mas cultivado.

Já a "sociedade", se deixada à própria sorte, se transforma rapidamente no império do mais forte. O mercado, que é uma de suas facetas mais salientes, se carente de regulação pública, resvala quase sempre para o oligopólio ou monopólio. Racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, escravidão foram práticas criadas no seio das sociedades humanas muito antes de terem se tornado, episodicamente, objeto de ações estatais. Essas são patologias que brotaram da vida coletiva humana e que, só por meio da necessária reflexão crítica produzida pela política democrática, passam a ser coibidas pelo Estado.

A desilusão com a política, que se alastrou pela população brasileira como uma pandemia a partir de meados da década passada, precisa ser revertida para que possamos retomar o caminho da construção democrática cujo centro é o combate às desigualdades. As eleições que se aproximam são um bom momento para isso.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.