Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Carta para minha filha

Se é para ser obrigada a algo como mulher negra, que seja à ternura

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“Cometi muitos erros, e sem dúvidas cometerei muitos outros antes de morrer (...) Aprendi a aceitar minha responsabilidade e a me perdoar primeiro.” Esse é um dos trechos do livro “Carta a Minha Filha”, de Maya Angelou, publicado pela primeira vez em 2008 e com recente edição brasileira pela editora Agir. 

Apesar de ter sido mãe de um filho, Angelou escreve esse livro em homenagem às mulheres de sua vida, àquelas que se deixaram cuidar como filhas, àquelas que a cuidaram como filha. 

Traz um prefácio belíssimo de Conceição Evaristo intitulado “Convocação à Ternura”. Angelou se humaniza de forma tamanha que nos convoca não somente a aceitar, mas a lutar pela nossa própria
humanização. As imposições sobre a maternidade confinam mulheres em papéis estereotipados e lugares fixos. 

Silhueta de mulher negra amamentando criança que está em seu colo.
Linoca Souza/Folhapress

Quando a escritora assume abertamente seus erros sem medo da responsabilidade e do próprio perdão a si mesma —algo difícil quando são introjetados valores como perfeição às mães—, trata-se de uma declaração por liberdade. 

O livro me fez lembrar de uma frase de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”, em que a filósofa francesa refuta a ideia de mãe desnaturada: para ela, esse conceito não existe, pois acreditar nisso seria acreditar que a maternidade é uma condição natural. Nesse sentido, existem mães boas ou más. Maya Angelou, ao não ter tido uma filha e por generosamente escrever às mulheres, também desnaturaliza a maternidade.

É fundamental a discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos. A maternidade não é um destino ou, como afirma Beauvoir, “não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída”. 

O lugar de não escolha —o compulsório, o imposto— precisa ser enfrentado sempre, pois acaba acarretando opressão. O não ser mãe, para além de uma questão individual a poucas, deveria ser possibilidade coletiva.

Porém, aqui, quero falar dessas mães que nos incitam a nos enxergar em nossa completude; quero falar daquelas que nem sequer, muitas vezes, foram possibilitadas de viver uma maternidade plena, posto que barradas por estruturas sólidas. 

Com uma escrita simples e direta, Angelou toca fundo e nos faz questionar nossas existências, muitas vezes paralisadas pelo medo, e refuta a superficialidade das relações.

“Vamos dizer a verdade às pessoas. Quando perguntarem: ‘Tudo bem?’, tenha a coragem de às vezes responder sinceramente. Você precisa saber, no entanto, que elas vão começar a te evitar, porque elas também têm joelhos que incomodam e cabeças que doem e não querem saber de suas dores.

Mas pense assim: se elas nos evitarem, teremos mais tempo para meditar e fazer uma boa pesquisa sobre a cura para o que realmente nos incomoda.”

Enquanto escrevia sobre a obra, um encontro se fez presente. Ao reler o livro “Águas de Cabaça”, da poeta Elizandra Souza, deparei com outra obra similar, uma oferenda. Entre poemas fortes e encantadores, Souza cita a escritora zimbabuense J. Nozipo Maraire, autora de “Zenzele – Uma Carta para a Minha filha” (Mandarim, 1996). 

Maraire escreve: “Você é uma menina forte, não se deixe vergar por ninguém. No mundo não existe um só homem que valha sua dignidade. Não confunda com amor o sacrifício de si mesma”. Que belíssimo encontro este —mulheres de geografias tão diferentes, em décadas distintas, proporcionam um diálogo de cuidado e afeto, de força e coragem. 

É bonito o modo como amam suas filhas sem romantizar a vida ou a própria maternidade. 

Maraire e Angelou nos fazem sentir filhas e, ao mesmo tempo, mães que dariam esses mesmos conselhos. São palavras que eu diria à minha própria filha para que ela pudesse enxergar a beleza para além das violências do mundo; para que ela pudesse lutar por transcendência em um mundo tão impregnado de barreiras. É, de fato, uma convocação à ternura. 

Perceba que Evaristo não disse convite, mas convocação. Como mães negras, tantas vezes brutalizadas pela vida, o amor e a ternura nos salvam do endurecimento que corrói; como mulheres a quem o amor muitas vezes foi negado, vivê-lo é uma forma de vingança.

Logo, como mães, elas não poderiam convidar as filhas à ternura. Um convite pode não ser respondido e ser negado com desculpas esfarrapadas. Quando se é convocada, você se sente impelida a, no mínimo, dar uma satisfação, é quase que obrigada. E se é para ser obrigada a algo como mulher negra, numa sociedade tão violenta, que seja à ternura.

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