Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

O orgulho que meu pai tinha me mostrava a influência do rei Pelé

Até hoje as histórias que mais gosto de Pelé são as do rei esbanjando futebol para audiências racistas que o xingavam

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Como uma santista caiçara —eu sei, um pleonasmo—, venho a esta coluna prestar todas as minhas homenagens ao rei Pelé, gênio majestade da brincadeira de criança mais popular do mundo. Estendo meu abraço à sua filha Kely Nascimento, toda a família e pessoas queridas.

Tanto Pelé quanto Edson estiveram presentes em toda minha vida. Lembro-me da emoção com a qual meu pai Joaquim, um corintiano "roxo", como ele dizia, falava de suas jogadas brilhantes. O orgulho que meu pai tinha me mostrava desde cedo o poder que o craque exerceu no imaginário de pessoas negras, sobretudo em homens negros, numa época de construções aviltantes à dignidade do povo. Um rei negro em um país racista, quem imaginaria uma ironia dessa.

Na ilustração de fundo marrom e amarelo, está o Rei Pelé, chutando uma bola, ele veste o uniforme do Santos futebol clube e tem uma coroa sobre a cabeça.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro - Aline Bispo

Li neste jornal que algo semelhante acontecia com o pai da minha colega escritora Eliana Alves Cruz, quem bem lembrou que, quando alguém era excelente no que fazia, as pessoas chamavam de "Pelé" da sua área. Nosso colega escritor Tom Farias também neste jornal revisitou a infância no subúrbio carioca de Realengo, em que os meninos pretinhos eram elogiados como "Pelezinhos".

Jovem adulta, estive no movimento de mulheres da Baixada Santista em diversas oportunidades com sua filha Sandra Arantes, vereadora na cidade, durante a saga pelo reconhecimento de paternidade.

Não éramos próximas porque divergíamos politicamente na maioria das vezes, mas naquele ponto em especial torcia e desejava sorte em sua jornada, cuja vida se encerrou de forma precoce, mas que deixou marcos legais importantes para todo o país.

Foi um episódio marcante em que vi a face do humano e não do rei, aquela face ainda muito presente em homens brasileiros de todas as classes sociais, do país em que mais de 5 milhões de crianças não tem o nome do pai na certidão de nascimento.

Uma face que mostra como a falta de conscientização do que é a misoginia e a reprodução sistemática do machismo são chagas que acometem inclusive os homens negros e, para além das feridas na reputação pessoal que freiam maiores aclamações, produzem traumas interpessoais, especialmente às mulheres, e contribuem para o retrocesso da sociedade brasileira como um todo.

Fui casada com Donald Verônico, pai da minha filha, que é filho de Abel Verônico, grande jogador do Santos do time de Pelé. Seu Abel, como o chamo, foi um craque da geração que teve ainda passagens pelo América e pelo Atlas de Guadalajara.

Até recentemente Seu Abel esteve como treinador dos times da categoria de base do Santos e nesta semana estava presente no velório de Pelé para render suas homenagens. Eram atletas "de outra época", em que penso que havia mais respeito, sobretudo às reverências a quem veio antes e marcou o nome do Brasil na história do futebol.

É fácil imaginar como o "Santos de Pelé" esteve presente em inúmeros almoços de domingo, com histórias memoráveis e vidas que se transformaram a partir desse time de futebol masculino que marcou história. Em que pese ele ser rei do futebol como um todo, acho importante enfatizar o masculino em um país que não valoriza o futebol feminino, modalidade que Pelé apoiava, e que tem grandes nomes, como Marta —quem ele enxergava como uma atleta excepcional, considerada rainha por muitos.

Foram desses tempos, do "Santos de Pelé", que vinham lições do rei esbanjando futebol para audiências racistas que o xingavam da entrada à saída. Ainda hoje, são suas histórias que eu mais gosto de ouvir.

Sim, parar uma guerra é um feito incrível. Há de ser algo além do comum para que uma guerra seja interrompida e Pelé era extraordinário. Mas aquela Djamila mais jovem queria saber mesmo dos zagueiros brancos furiosos e dispostos a quebrar suas canelas, mas levarem cotoveladas de volta; de saírem das jogadas driblados, goleados, estatelados no chão, vendo ele ser ovacionado. De pele preta, espinha ereta e faro dos mil gols, Pelé foi soberano.

Acompanhei as notícias sobre ele no hospital, sendo abraçado e querido pela família, inclusive pelos filhos de Sandra, que em entrevistas para a mídia falaram sobre perdão ao avô, mostrando outra face do humano: a da redenção.

Crescer em Santos me fez amar Pelé e perceber o quanto o fato dele ter escolhido a nossa cidade colocou não apenas o time da Vila Belmiro no mapa, mas envolveu a Baixada em uma mística que durará para sempre.

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