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'A Vestida' exalta os sonhos apesar das marcas da violência

Contos de Eliana Alves Cruz apresentam a vulnerabilidade de vidas negras que seguem em perigo

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Fernanda Silva e Sousa

Doutoranda em teoria literária e literatura comparada na USP

A Vestida

  • Preço R$ 46 (114 págs.)
  • Autor Eliane Alves Cruz
  • Editora Malê

Eliana Alves Cruz tornou-se uma figura proeminente na literatura brasileira com os romances "Água de Barrela", "O Crime do Cais do Valongo", ambos de 2018, e "Nada Digo de Ti que em Ti não Veja", de 2020, em que a experiência da escravidão é trazida para o centro da narrativa a partir do modo como era vivida —e desafiada— por personagens negras.

Já em "Solitária", seu romance mais recente, a autora se lançou a um presente marcado pela "sobrevida da escravidão" —expressão da historiadora americana Saidiya Hartman— no que diz respeito à exploração do trabalho doméstico de mulheres negras.

A escritora carioca Eliana Alves Cruz - Eduardo Anizelli/Folhapress

Com "A Vestida", seu primeiro livro de contos, Cruz se mostra novamente uma atenta escritora do presente, compondo um multifacetado retrato de um momento em que a violência antinegro recrudesce à medida que descendentes de escravizados têm conquistado mais oportunidades.

No entanto, em vez de narrativas de superação, Cruz nos apresenta a vulnerabilidade de vidas que seguem em perigo, como a de Dadau, do conto "Peito de Ferro", que "estava sempre na corda bamba em que se equilibram os que sonham demais" e "os que veem e sentem todas as dores".

Nos 15 contos da obra, o leitor se depara com crianças, jovens, mulheres e homens que, em meio a uma realidade violenta, parecem entender que a capacidade de sobreviver passa por um (re)encontro subjetivo consigo mesmo que não está apartado da ancestralidade, pois os mortos "ainda não partiram nas brumas espessas do tempo", como diz o narrador de "O Ferro, a Bruma e o Tempo".

As respostas aos desafios do presente também estão, assim, no passado, sabendo que "Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje", segundo um dos personagens do conto "Oitenta e Oito".

Nesse processo, o conto de abertura "Cidade Espelho", protagonizado por Narciso, um homem branco de elite que vive no país de Justiçópolis, é uma fina ironia à figura do "homem de bem" e seu "esforço herdado", desvelando o vazio de quem depende da aniquilação do outro para não enxergar o "buraco no peito incurável".

É depois de despir o cidadão de bem de sua frágil e risível armadura que Cruz nos convida a um encontro com a delicadeza de personagens negros que tentam sobreviver a um país repleto de Narcisos, mas que nem sempre conseguem.

Em "Noite sem Lua", Marilene, uma menina negra de 11 anos, discriminada na escola, encontra na beleza da noite e suas "partes arroxeadas" um espelho onde, enfim, consegue se enxergar. Em "Não Passarão", Flávio, um professor de matemática combativo, lida com um desânimo autodestrutivo diante da violência policial cotidiana, a que somente a sua flauta, com a qual toca Pixinguinha, parece oferecer uma linguagem possível para o indizível e o insuportável. Natureza e música irrompem, assim, como forças imateriais que sustentam a vida.

Falando de música, o conto "A Formatura" se destaca no livro em seu diálogo com o famoso samba "Casa de Bamba", de Martinho da Vila, ao retratar o retorno de José —"o primeiro diplomado na família inteira, o bacharel tão sonhado e letrado"— à casa onde cresceu como um reencontro com o passado e com os seus ancestrais, onde a palavra "bamba" é revestida de um sentido ético e coletivo que a palavra "doutor" parece não dar conta no seio das famílias negras que passam a ter seus primeiros mestres e doutores, mas nunca foram destituídas de figuras de autoridade e saber.

"A Vestida", por sua vez, conto que dá título ao livro, é narrado sob a ótica de um vestido de noiva de brechó que reivindica ser chamado de "a vestida" e "que já fora salpicado com sangue que brota brutalidade do sentimento de posse".

Ao desejar desfilar "pelas passarelas de muitos e muitos carnavais" e não em casamentos, o vestido do conto parece simbolizar um dos movimentos que animam o livro: o de que é sempre tempo de sonhar, contar e viver outras histórias, mesmo com as cicatrizes de uma violência irreparável.

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