Eliana Alves Cruz tornou-se uma figura proeminente na literatura brasileira com os romances "Água de Barrela", "O Crime do Cais do Valongo", ambos de 2018, e "Nada Digo de Ti que em Ti não Veja", de 2020, em que a experiência da escravidão é trazida para o centro da narrativa a partir do modo como era vivida —e desafiada— por personagens negras.
Já em "Solitária", seu romance mais recente, a autora se lançou a um presente marcado pela "sobrevida da escravidão" —expressão da historiadora americana Saidiya Hartman— no que diz respeito à exploração do trabalho doméstico de mulheres negras.
Com "A Vestida", seu primeiro livro de contos, Cruz se mostra novamente uma atenta escritora do presente, compondo um multifacetado retrato de um momento em que a violência antinegro recrudesce à medida que descendentes de escravizados têm conquistado mais oportunidades.
No entanto, em vez de narrativas de superação, Cruz nos apresenta a vulnerabilidade de vidas que seguem em perigo, como a de Dadau, do conto "Peito de Ferro", que "estava sempre na corda bamba em que se equilibram os que sonham demais" e "os que veem e sentem todas as dores".
Nos 15 contos da obra, o leitor se depara com crianças, jovens, mulheres e homens que, em meio a uma realidade violenta, parecem entender que a capacidade de sobreviver passa por um (re)encontro subjetivo consigo mesmo que não está apartado da ancestralidade, pois os mortos "ainda não partiram nas brumas espessas do tempo", como diz o narrador de "O Ferro, a Bruma e o Tempo".
As respostas aos desafios do presente também estão, assim, no passado, sabendo que "Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje", segundo um dos personagens do conto "Oitenta e Oito".
Nesse processo, o conto de abertura "Cidade Espelho", protagonizado por Narciso, um homem branco de elite que vive no país de Justiçópolis, é uma fina ironia à figura do "homem de bem" e seu "esforço herdado", desvelando o vazio de quem depende da aniquilação do outro para não enxergar o "buraco no peito incurável".
É depois de despir o cidadão de bem de sua frágil e risível armadura que Cruz nos convida a um encontro com a delicadeza de personagens negros que tentam sobreviver a um país repleto de Narcisos, mas que nem sempre conseguem.
Em "Noite sem Lua", Marilene, uma menina negra de 11 anos, discriminada na escola, encontra na beleza da noite e suas "partes arroxeadas" um espelho onde, enfim, consegue se enxergar. Em "Não Passarão", Flávio, um professor de matemática combativo, lida com um desânimo autodestrutivo diante da violência policial cotidiana, a que somente a sua flauta, com a qual toca Pixinguinha, parece oferecer uma linguagem possível para o indizível e o insuportável. Natureza e música irrompem, assim, como forças imateriais que sustentam a vida.
Falando de música, o conto "A Formatura" se destaca no livro em seu diálogo com o famoso samba "Casa de Bamba", de Martinho da Vila, ao retratar o retorno de José —"o primeiro diplomado na família inteira, o bacharel tão sonhado e letrado"— à casa onde cresceu como um reencontro com o passado e com os seus ancestrais, onde a palavra "bamba" é revestida de um sentido ético e coletivo que a palavra "doutor" parece não dar conta no seio das famílias negras que passam a ter seus primeiros mestres e doutores, mas nunca foram destituídas de figuras de autoridade e saber.
"A Vestida", por sua vez, conto que dá título ao livro, é narrado sob a ótica de um vestido de noiva de brechó que reivindica ser chamado de "a vestida" e "que já fora salpicado com sangue que brota brutalidade do sentimento de posse".
Ao desejar desfilar "pelas passarelas de muitos e muitos carnavais" e não em casamentos, o vestido do conto parece simbolizar um dos movimentos que animam o livro: o de que é sempre tempo de sonhar, contar e viver outras histórias, mesmo com as cicatrizes de uma violência irreparável.
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