Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu violência

Assassinato de Mãe Bernadete tem assinatura do país do latifúndio

Que todo o plano pretendido com esse crime vil se transforme no oposto

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Na semana passada ficamos chocadas com o assassinato de Mãe Bernadete Pacífico, ialorixá e coordenadora da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos. Mesmo estando sob o programa de proteção do Ministério dos Direitos Humanos, mãe Bernadete foi assassinada de modo brutal e violento, levando 12 tiros no rosto na sala de sua casa, com os netos trancados em um cômodo ao lado.

A senhora de Pitanga dos Palmares honrou seu orí majestoso ao lutar e denunciar o crime que ceifou a vida de seu filho Binho do Quilombo, assassinado friamente, em circunstâncias similares ao crime que ceifou sua própria vida cinco anos depois. Nenhuma mãe deve jamais enterrar seu filho e as mães negras estão fartas dessa calamidade. Tudo é tão vil e violento que somente recorrendo às forças dos orixás para sublimar a dor que esse caso nos traz.

A notícia da morte de Mãe Bernardete é levada por Exu a todas as encruzilhadas para que o país, que se habituou com a morte em massa de pessoas negras, engasgue. Oxaguiã se veste de branco. O jovem guerreiro persevera na guerra rumo ao novo, em uma busca incessante pela paz e comunhão. É o orixá para quem pedimos fôlego quando estamos cansados de tantos absurdos que visam nos calar, mas precisamos seguir caminhando. Ele está no ar e na luta do povo negro que resiste há séculos no país, afastando-nos, graças à orixá, da apatia que visa nos calar ante tantas notícias absurdas.

Ilustração de Mãe Bernadete. Ela está sentada, usa um torço de tecido cobrindo os cabelos, um pano da costa sobre o ombro e atrás de si as plantas espadas de Santa Bárbara/Iansã.
Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 24.ago.2023 - Folhapress

Seguimos respirando para nos indignar mais um dia, apesar de tudo, em nosso nome, em nome dos nossos antepassados, em nome da reza das nossas avós, das nossas mães, das nossas Iyás. A lágrima que escorre dos nossos olhos é de indignação, o choque diante da notícia cruel nos rouba o ar até voltarmos a nós e exigirmos toda a justiça, reparação e memória a que temos direito enquanto povo.

Recupero o fôlego para deixar minha mais profunda solidariedade a toda comunidade quilombola que chora a morte de Bernardete Pacífico, assassinada de forma brutal, covarde e com a assinatura de um país do latifúndio, que saqueou das pessoas negras, desde o momento em que foram trazidas à força em navios que aviltaram a dignidade humana, a possibilidade de viver em comunidade em uma terra titulada e produtiva, longe de ameaças e violências diversas.

Aproveito para deixar um abraço apertado, sem palavras à altura da orfandade imposta de maneira tão dura, à querida irmã Selma Dealdina, filha do Rei Xangô, orixá que fará a Justiça.

A benção, mãe Bernardete. Sua mãe Oyá está na guarda, guiou-a pela travessia em festa pela missão cumprida nessa terra. Oyá é uma mãe guerreira, que deixa os chifres de búfalo para os seus filhos em perigo.

Em nome de todas as minhas ancestrais, espero que todo o plano pretendido com esse crime vil vire o oposto. Que as pessoas que desse assassinato pensaram se beneficiar vejam suas pretensões se putrefazerem enquanto os sonhos de Mãe Bernardete florescem à altura do céu.

Somente nesse estado da Bahia, em um ano, a polícia mata mais do que toda a polícia dos Estados Unidos, segundo dados do Anuário de Segurança Pública. Em qualquer governo estadual e federal isso é uma vergonha. Em um governo progressista, então, me faltam palavras para definir.

A polícia de governos estaduais de direita matam, as de esquerda também. Se um ex-governador do Rio de Janeiro afirma que é para "mirar na cabecinha", um outro na Bahia diz que policiais são artilheiros na frente do gol. Partidarizar essas mortes endêmicas no país por proselitismo político deveria envergonhar quem se diz intelectualmente honesto.

Dito isso, um governo eleito pelo voto da população negra, mais do que se dizer de esquerda, deve adotar as políticas de segurança pública e de titulação de terras com todo seu compromisso intelectual, com coragem e vontade política para as reformas necessárias, sem mais acenos a uma estrutura que está assassinando pessoas negras.

A vingança do povo negro brasileiro é o poder incomensurável da nossa ancestralidade, que nos mantém vivos, aos milhões, em um país que tentou nos calar como pode.

Bobo é quem acha que o Brasil não tem memória. Uma parte considerável não tem, é verdade. Mas esse chão tem sido encharcado com o sangue do povo negro e indígena. Esta terra lembra de tudo e não esquecerá o que foi feito a Mãe Bernardete Pacífico.

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