Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Todas Portugal

Instalação mostra de forma delicada agruras dos navios negreiros

Já exposta em Lisboa, obra pode ser vista agora em Inhotim

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Inaugurada nesta semana em Inhotim, "O Barco" é uma instalação artística idealizada por Grada Kilomba. A pensadora é dona de múltiplos talentos, incluindo o de dirigir uma performance viva que ao mesmo tempo em que traz, de forma delicada, as agruras dos navios negreiros inspira a reflexão sobre igualdade, o respeito e a revolução a partir do absurdo que se fez durante séculos e cujas consequências são presentes até hoje.

Tive o privilégio de assistir à apresentação de inauguração e posso dizer que fiquei absorta, como se estivesse há horas em um mantra entrosado pela percussão, pelo balé clássico, as cantigas, o cenário, as vozes, o sussurro e a grande história. Ao final, lágrimas corriam em meu rosto, como se a dor que meus ancestrais suportaram fosse, de alguma forma, curada.

Penso que assim fazem as obras de excelência: suspendem-nos numa frequência de introspecção. Olhamos para nós mesmos e revisitamos momentos que nem sabíamos que estavam guardados. De outro lado, são obras que nos colocam em um processo de expansão, como galhos que se esticam em uma árvore crescida pela água da chuva e a luz do Sol.

Nos dias anteriores, a expectativa tomava conta do Inhotim, o maior museu aberto da América Latina. No curso de uma nova rota de navegação do museu, a chegada do "Barco" em seus domínios também é muito bem-vinda. E aguardada. A exposição já havia sido consagrada como uma das mais concorridas de Portugal neste século, quando foi exposta às margens do rio Tejo.

E a embarcação chegou agora ao Brasil, onde suas provocações são tão necessárias. A montagem de meses exigiu o trabalho de muitas pessoas que se dedicaram para a instalação. Na equipe de Grada, foi uma alegria conhecer Matilde Outeiro, assistente de direção, e Yhesley Bezerra, alagoano, que assinou a arquitetura de resultado tão aclamado.

A ilustração de fundo rosa tem à sua esquerda a vista superior de um navio negreiro, à direita a imagem lateral de uma caravela, e ao centro, um punho negro erguido com a planta "Espada de Santa Bárbara na mão". Sendo essa uma planta herbácea de origem africana e muito conectada a diversas tradições afro-brasileiras.
Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 18 de abril de 2024 - Aline Souza/Folhapress

E pelo museu é de se saudar o trabalho desenvolvido por todo o time de direção artística, curadoria e comunicação para possibilitar esse belíssimo trabalho no Brasil. Aproveito para parabenizar Júlia Rebouças, que voltou à direção artística do museu, e a curadora Marília Loureiro.

Na Galeria Galpão, as peças de madeira queimada foram dispostas de modo geometricamente pensado para apreciação pelo público. Nas peças de madeira do barco, gravados em dourado, os poemas em diversos idiomas ecoam a cantiga sobre o barco, o porão, a carga, a memória, a ferida a dor, a revolução e a luta por igualdade.

Para as apresentações de estreia, um grupo da diáspora lusófona desembarcou em Belo Horizonte. Ali, misturaram-se dançarinos de balé clássico, percussionistas e tenores para uma profusão de sussurros, danças, cantos, toques dos atabaques que formaram a tecnologia ancestral mágica.

De uma forma geral, saímos daquela Galeria Galpão diferentes do que entramos. Pois palavras podem não ser suficientes para descrever os horrores do transporte forçado de milhões de pessoas acorrentadas, agredidas, mortas. É uma ferida infeccionada que se adaptou e seguiu produzindo traumas de geração a geração. Nessa trilha espinhosa, como uma griot, Kilomba cria um campo energético de reflexão e nos mostra uma passagem.

É dela uma metáfora de que gosto muito —e já citei algumas vezes. Fala sobre fantasmas como espíritos errantes, que encontraram um fim traumático e não conseguiram fazer a passagem em paz. E, enquanto não resolvem seus problemas, seguem no plano terreno atormentando os vivos. Fantasmas como a escravidão, fantasmas como o colonialismo. Resolver essas histórias é um descanso para o passado e o presente.

Em "Como la Cigarra", Mercedes Sosa cantou sobre como "tantas vezes me mataram, tantas vezes eu morri. No entanto estou aqui, ressuscitando. Agradeço à desgraça e à mão com punhal, porque me matou tão mal, e eu continuei cantando. Cantando ao Sol como a cigarra, depois de um ano debaixo da terra, igual a um sobrevivente que volta da guerra".

Penso que a obra de arte impacte cada um e cada uma a seu modo. Durante a apresentação, lembrei-me dessa canção de Mercedes Sosa, pois fui atravessada por uma mensagem indescritível de resistência e esperança. Apesar dos pesares, venho da tradição de celebração de um povo que fez da sua injustiça a força motriz para a insurgência.

Precisaria de uma mente brilhante para tratar de um tema tão duro de forma tão sensível. Grada Kilomba conseguiu esse feito, razão pela qual a exposição "O Barco" é uma das visitas obrigatórias a todas as pessoas que estiverem em Inhotim.

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