Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

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Elio Gaspari
Descrição de chapéu Argentina Itamaraty

O efeito Milei e o Itamaraty

Trata-se de tirar as meias sem tirar os sapatos

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O anarcocapitalista Javier Milei surpreendeu arrebatando 30% dos votos na primária presidencial argentina. A eleição será em outubro e muita água passará debaixo da ponte. Mesmo assim, num país com 114 % de inflação anual, o Banco Central (que ele promete fechar) subiu os juros para 118%, em poucos dias, o dólar disparou e os títulos da dívida argentina despencaram.

A encrenca argentina é séria, mas não é inédita. Lá, o general Jorge Rafael Videla, ditador deposto em 1981, morreu num banheiro da cadeia em 2013. Em 2001, o presidente civil Fernando de la Rúa fugiu da Casa Rosada e em duas semanas o país teve três presidentes.

O governo do presidente Alberto Fernández está bichado. Cumpriu-se parcialmente uma profecia de Jair Bolsonaro, impropriamente enunciada durante a campanha eleitoral de los hermanos. Fernández e Lula aproximaram-se. Javier Milei, por sua vez, aproximou-se de Bolsonaro.

O candidato a presidente da Argentina Javier Milei comemora o resultado das prévias eleitorais, no último domingo (13) - Alejandro Pagni/AFP

Com as cartas que estão na mesa, é forte o efeito gravitacional que levaria o Brasil a se meter na encrenca argentina. Se Bolsonaro não deveria ter se metido na campanha de 2019, o governo de Lula não deve se meter na disputa de 2023. À primeira vista isso parece impossível, até injusto. Seria como tirar a meia sem tirar o sapato.

Para diplomatas competentes, não só isso é possível, como em circunstâncias piores, o Itamaraty já fez a mágica.

Em 1982, os presidentes Leopoldo Galtieri e João Baptista Figueiredo eram bons amigos. Militares brasileiros sequestravam exilados argentinos no Brasil e militares argentinos sequestravam brasileiros em Buenos Aires. O general Galtieri (um bebum) teve sua ideia: invadir as ilhas Falklands, terras perdidas no meio do oceano, governadas pelos ingleses.

A primeira parte foi fácil e ele tomou as Malvinas. Restava a segunda: o que faria a Inglaterra, governada pela primeira-ministra Margaret Thatcher? No dia 23 de abril de 1982, o embaixador do Brasil em Londres, Roberto Campos, informava: "Especula-se que as propostas britânicas estariam divididas em três fases: retirada argentina, período de transição, onde o Reino Unido faria algumas concessões no sentido de uma administração partilhada, e de uma negociação da situação final das ilhas, inclusive da questão da soberania".

No dia seguinte, foi além: "Vários observadores vêm insistindo em que seria muito pouco provável que o Reino Unido inicie operações militares contra a Argentina enquanto estão em curso negociações".

Ilusão do doutor. Thatcher desceu a frota, retomou as ilhas e Galtieri, humilhado, foi mandado para casa. No Itamaraty, estava o chanceler Ramiro Guerreiro, de sapatos e meias. Ele sabia que a aventura militar acabaria em desastre. Tratava-se de dissociar-se da maluquice, sem colocar o Brasil na condição de aliado dos ingleses numa questão sensível para todos os argentinos.

Guerreiro conteve os ímpetos de Figueiredo e dos militares brasileiros aliados da ditadura argentina, com suas dezenas de milhares de mortos. O chanceler Guerreiro era um diplomata discreto. Seu colega Araújo Castro dizia que ele era a única pessoa capaz de dormir durante o próprio discurso.

Por calado, Guerreiro não deixou registro público da sua mágica. Seus detalhes estão nos arquivos do Itamaraty. Passados 41 anos, eles estão disponíveis para quem sente o impulso de se meter na encrenca argentina e na alma aventureira de Javier Milei.

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