Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

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Esper Kallás
Descrição de chapéu Coronavírus

Buscar culpados pela origem do novo coronavírus pode prejudicar a todos

Origem geográfica tem importância para a epidemiologia, mas faz injustiça quando tira o foco do problema

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Vírus infecta célula. Seu principal objetivo é multiplicar-se e, para isso, tem vantagem aquele que consegue ser transmitido com facilidade, preferencialmente sem causar a morte do organismo infectado. Vírus não é inteligente e não tem personalidade. Vírus não tira passaporte, nem visto e não respeita fronteiras. Mas surge em algum lugar.

Vários germes receberam nomes baseados na região onde ocorreram os casos que permitiram sua descoberta. O Hantavírus está ligado ao Rio Hantan, na Coréia do Sul. O vírus Ebola ganhou o nome de um rio, na República Democrática do Congo, próximo à vila em que, pela primeira vez, foram identificados casos da doença. O vírus Zika ganhou o nome da floresta Ziika, em Uganda, onde foi isolado no sangue de um macaco, colocado estrategicamente como “sentinela” na copa de uma árvore. O parasita causador da leishmaniose cutânea, conhecida como “úlcera de Bauru”, é denominado Leishmania brasiliensis, entretanto está presente em vários países das Américas.

A origem geográfica de um agente infeccioso tem importância para a biologia e, sobretudo, para a epidemiologia, que estuda as vias de disseminação das doenças. Mas faz injustiça quando tira o foco do enfrentamento do problema.

Temos como exemplo a Cólera, que chegou à Europa no século 19, advinda do delta do Rio Ganges. Foi chamada de “Cólera Asiática”, denominação que serviu para reforçar argumentos imperialistas, incriminando todo o continente asiático por décadas. Outro exemplo foi a gripe espanhola, que só ganhou esse nome porque foi a Espanha quem primeiro reconheceu a ocorrência desses casos pois não estava em combate na Primeira Guerra Mundial. A região de origem do vírus causador da gripe espanhola ainda é desconhecida.

Atualmente dispomos de muitas técnicas para avaliar a origem de um vírus, como aconteceu com o Sars-CoV-2, o novo coronavírus, cujo nome deriva da sigla em inglês para Síndrome Respiratória Aguda Grave pelo Coronavírus 2. A sequência genética desse vírus foi rapidamente disponibilizada por pesquisadores chineses, mas já temos a análise do vírus em aproximadamente 5.000 casos de Covid-19 em todo o mundo.

Essa análise genética nos mostra que é um agente infeccioso que surgiu na natureza. Um vírus criado em laboratório deixaria rastros perceptíveis, não identificados nesta análise, derrubando enfaticamente essa alegação. Também foi possível documentar a similaridade deste vírus com ancestrais encontrados em morcegos da região de Wuhan e isolados ainda em outro animal local, conhecido como pangolim. Tudo respaldado em dois trabalhos publicados recentemente na revista Nature, periódico reconhecido e respeitado pela comunidade científica mundial.

Outra constatação é a baixa taxa de mutações ocorridas durante a disseminação do Sars-CoV-2. Esse é um vírus bastante estável, quando comparadas as características genéticas em todas as regiões onde se alastra no mundo.

Não se espera que seu comportamento mude drasticamente, quer seja na transmissibilidade de pessoa para pessoa, quer seja na capacidade de causar mortes.

O novo coronavírus, portanto, preenche todas as características de uma zoonose, ou seja, um germe que foi transmitido de um animal para um humano, como já discutido na semana anterior nessa coluna.

A determinação da origem de uma zoonose é importante ferramenta epidemiológica para entender a dinâmica de disseminação do vírus. Subverter esse conhecimento apenas para reforçar qualquer retórica beligerante pode prejudicar muito o enfrentamento da pandemia.

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