Desde que as vacinas foram descobertas, 3,2 bilhões de doses já foram aplicadas no mundo. É um grande feito em tão curto período, mas com um perverso enredo, que expõe as feridas da iniquidade global.
Até agora, 75% destas doses foram usadas por não mais que dez países, enquanto somente 1% chegou aos países africanos. Em fala na abertura da Assembleia Mundial de Saúde, no dia 24 de maio de 2021, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da ONU, descreveu a situação como uma "desigualdade escandalosa".
Os números são assombrosos e suas consequências são atrozes. Enquanto países desenvolvidos retomam as atividades, outros mais pobres seguem à sorte das mazelas da pandemia, com serviços médicos lotados, UTIs cheias e grande número de mortes.
Para ser eficaz, o combate global à pandemia deveria priorizar as regiões com maior transmissão. Por ocorrer por gotículas e aerossóis, encontra caminho fácil em ambientes coletivos e de grande aglomeração, incluindo portos, aeroportos e estradas. Países com boa infraestrutura em habitação e transporte não são os principais pólos de disseminação do vírus.
Tampouco adianta privilegiar a proteção de uma população restrita quando, no mundo globalizado, é possível que uma pessoa vá de um lugar do planeta a outro em menos de um dia. Um infectado na Índia ou na Inglaterra pode levar consigo um vírus ao resto do mundo em muito pouco tempo.
É preciso proteger todos para que o controle seja eficiente.
Tudo isso se torna ainda mais complicado com o surgimento das variantes, algo pouco conhecido até então para vírus com material genético relativamente longo, constituído de RNA, como é o caso do novo coronavírus. Até agora, acreditava-se que mutações capazes de aumentar sua transmissibilidade estavam mais próximas de uma alusão teórica. A pandemia de Covid-19 demonstrou que é fato.
Um dos fatores responsáveis pelo aparecimento das variantes é o grande número de pessoas que se infectam, ainda sem resposta imune contra o novo coronavírus. É a vacinação em massa que pode dificultar a disseminação e, consequentemente, as chances de surgirem novas variantes. Em outras palavras, empregar estratégias de acesso global à vacinas beneficiaria a todos.
É preciso que se corrija a enorme desigualdade no acesso às doses.
A OMS desenvolveu a iniciativa Covax (Covid-19 Vaccines Global Access), que coordena diferentes recursos na promoção de acesso a vacinas por países de baixa ou média renda. A despeito do esforço, seu resultado não tem sido suficiente: o número de doses ofertadas àqueles que mais precisam ficou aquém da proposta inicial. A previsão de 100 milhões de doses até março de 2021 não foi atingida. Até o início de julho, 95 milhões de doses havia sido distribuídas.
Por ora, vacinas são um artigo de luxo para a maioria da população mundial. Precisamos mudar este cenário.
Tal mudança passa pelo fortalecimento de centros produtivos, públicos e privados, em diferentes países, e pela facilitação do acesso a itens patenteados na escala produtiva, e também pelo estímulo à formação e ao aprimoramento da mão de obra especializada nos países que mais precisam. Passa pelo fomento ao desenvolvimento de empresas de biotecnologia em diferentes países e pelo empoderamento de órgãos representativos, como a OMS, para articular estratégias globais.
Países desenvolvidos e a grande indústria farmacêutica também precisam dar uma resposta mais ampla e contundente. Se não por preocupação com a desigualdade, que seja por uma estratégia mais ampla de acesso a vacinas no enfrentamento de pandemias.
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