Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Que caminhos nos levaram a esse elenco de Napoleões de hospício?

As causas são tantas que é impossível à ciência dos homens compreendê-las

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Já há alguns anos, tenho conseguido escapar do calor estupefaciente de janeiro no Rio. O que começou como sorte, tornou-se missão, e as tão almejadas férias, sinal da idade, viraram hábito e necessidade.

Mas elas passam, como passam os verões, e aqui estou eu de volta, escovando os dentes com água mineral para sobreviver ao descaso com o saneamento básico, que emporcalhou o Guandu.

O Rio de Janeiro sofre de um problema cármico.

As férias afrouxam a disciplina, eliminam o estoicismo das veias e nos distanciam do mundo, convidando a um não querer lascivo e perigoso, ao mesmo tempo que lembram o que é, de fato, estar vivo.

Se houve, em mim, algum empenho nesse mês que gozei da ausência foi o de dar conta do volumoso “Guerra e Paz”. Romance apaixonante, que quando não te enreda em intrigas de amor e traição, te oferece um quadro assombroso da inevitabilidade da guerra e do destino dos povos.

E na Rússia pré-soviética, ameaçada por Napoleão, aprendo com Tolstói que a vontade dos homens é uma ilusão que criamos para suportar o incontrolável fluxo dos acontecimentos, ao qual estamos presos e do qual não se pode escapar.

E em meio às mais de mil páginas do cânone, do outro lado do Atlântico, recebo a auspiciosa notícia da exoneração do secretário da Cultura Roberto Alvim. Dele, que ascendeu ao cargo xingando minha mãe e caiu de maduro graças a uma pantomima de Goebbels de botequim, ofendendo a comunidade judaica, tão cara ao presidente mito.

Que caminhos nos levaram a esse elenco de Napoleões de hospício? À abstinência de Damares, às cruzadas de Araújo, ao desenvolvimentismo predatório de Salles e à incompetência alarmante de Weintraub? As causas são tantas, ensina Tolstói, que é impossível à ciência dos homens compreendê-las.
Resta o pasmo.

Tolstói refuta a crença de que a megalomania dos Napoleões, Trumps e Jaires de ocasião seja a força motora do curso da história. Líderes obstinados, eles não teriam o poder de, sozinhos, arrastar multidões para se aniquilarem em guerras e conquistas, amores e ódios.

Ilustração de Jair Bolsonaro com uma faixa de presidencial transparente e um pinico na cabeça
Publicada neste domingo, 9 de fevereiro de 2020 - Marta Mello/Folhapress

O livre-arbítrio dos soberanos é fantasia tosca. A liberdade de escolha desses supostos heróis estaria submetida à necessidade ingovernável dos povos.

Os europeus ocidentais marcharam para o Oriente impelidos por milhões de pequenos anseios. Moscou ardeu em chamas não por ordem de Napoleão, afirma Tolstói, mas pelo abandono de seus habitantes e pela centelha de incontáveis fogueiras acesas pela tropa carente de calor.

Uma força invisível, muito maior do que o ego imenso do autocoroado imperador, impeliu o Exército francês até Moscou para, na fuga, ser aniquilado pelo frio. E, como no refluxo de uma onda, o Oriente, então, avançou sobre o Ocidente.

Criticada por seus contemporâneos, trata-se de uma visão fatalista da história, niilista, como observa o filósofo e historiador Isaiah Berlin, no posfácio de “Guerra e Paz” da edição da Companhia das Letras.

Mas como não ser tomado pelo fatalismo, diante da guerra irracional enfrentada pela geração que antecedeu o escritor russo? Como vencer o niilismo, quando a educação de um país semi-alfabetizado é entregue ao aloprado Weintraub; ou quando um prefeito carola e incompetente prega a vida eterna para os que são obrigados a encarar o SUS?

Difícil admitir, mas parte de nós, ou todos nós, nos movemos em direção a isso.

Talvez, o Rio de Janeiro, ex-capital, sinta, como nenhuma outra cidade, o peso da fatalidade. A hegemonia cultural, econômica e política do litoral foi transferida para Brasília e, mais tarde, para o eixo produtivo do agronegócio.

O sertanejo universitário é a atual bossa nova.

A Igreja Católica, tão sincrética quanto acomodada, perdeu fiéis para o pragmatismo evangélico, que demoniza as religiões africanas e a moral progressista, mas foi capaz de criar ordem e progresso em áreas esquecidas pelo poder público.

Os Napoleões de hospício, amparados pelo mercado ou ignorados por ele, refletem a nova ordem desejada, queiramos ou não, por uma parte substancial da população.

A julgar pelo vexame democrata em Iowa e o triunfal discurso do Estado da União, Trump será reeleito. Qualquer guinada no Ocidente fica adiada para meados dos anos 2020.

Para aguentar o tranco, só as férias, só a sagacidade do velho general Kutuzov, que, minimizando os estragos, depositou a vitória russa sobre Napoleão em seus dois maiores soldados: a paciência e o tempo.

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