Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Torres

Seria cômico se não fosse sério

Seria gargalhada na veia, não fosse a fogueira da inquisição dos livros didáticos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mês passado, a pedido da Companhia das Letras, gravei um vídeo de desagravo ao banimento do livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, da lista de obras recomendadas para estudantes da rede pública de ensino do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás.

Para fundamentar a censura, as secretarias de Educação dos estados alegaram o uso de "expressões impróprias" para menores de 18 anos, contrariando o parecer do Programa Nacional do Livro e do Material Didático do Ministério da Educação, para uma obra agraciada com o Prêmio Jabuti de Literatura de 2021.

Para quem não leu "O Avesso da Pele", a justificativa faz parecer que o livro é menos uma reflexão finíssima sobre a violência, a educação e o racismo e mais uma obra picante, na linha de "A Casa dos Budas Ditosos", de João Ubaldo Ribeiro, ou de "O Caderno Rosa de Lori Lamby", de Hilda Hilst.

Ao gravar meu cândido vídeo de protesto sobre a exagerada defesa da moral e dos bons costumes da decisão, mil argumentos risíveis me passaram pela cabeça. O receio de que o humor descambasse para o escárnio, jogando por terra a argumentação, me fez frear os cavalos.

Preferi me valer de dois clássico da literatura brasileira do meu tempo de ginásio —sim, eu sou do tempo do ginásio— que, seguindo a zelosa lógica das secretarias, também mereceriam o veto das bibliotecas públicas de ensino: "O Tempo e o Vento", de Érico Veríssimo, pela descrição detalhada de um estupro coletivo; e "Dom Casmurro", de Machado de Assis, pela suposta traição no casamento, com toques sutis de homossexualidade.

Num arranjo "bagunçado" e colorido, a ilustração busca um tom tragicômico, a fim de contemplar o tema da crônica, expresso já no título: "Seria cômico, se não fosse sério". Sobre fundo branco, ocupando dois terços da ilustração, paira uma boca enorme, que gargalha mostrando os dentes; olhos sorridentes e nariz estão insinuados. O traço da ilustração é num estilo entre o infantil e o tosco. Há rabiscos e sinais nos dentes, sugerindo precariedades - alguns dentes tem cáries, outros dentes tem janelas e portas, como se fossem casinhas ou prédios, outros dentes são montanhas e montes, enfim, a boca que gargalha evoca também uma paisagem urbana (em torno de uma lagoa ou rio ou etc.). No terço restante da ilustração, à direita, vemos um homenzinho de corpo inteiro, bem pequeno e esquemático, olhos, boca e corpo todo gargalhando. Dos olhos dele esguicham pra cima três lágrimas de riso azul-claras, estilo quadrinhos. Ao mesmo tempo, três balas cinzentas de alguma arma de fogo descem do alto enfileiradas, apontadas para o homenzinho. Finalmente, na borda desse canto direito vemos seis grandes gotas vermelhas caindo do alto - são gotas de sangue.
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres de 3 de abril de 2024 - Marta Mello/Folhapress

Após enviar o protesto, li o artigo de Ricardo Araújo Pereira sobre a pendenga, publicado no dia 16 de março, nesta Folha. Livre e solto, o gênio português tratava o problema com a comicidade devida. Que mal faria o livro de Tenório, argumentava o luso, a um aluno do fundamental munido de um celular capaz de lhe dar acesso não só às mais vis libidinagens como ao PDF do "Mein Kampf"? E como poderia esse mesmo aluno ser protegido por um governador que atende pelo nome de Ratinho Júnior?

Antes de o mundo sair dos trilhos, tudo aquilo que, para mim, soaria ridículo —a oração do pneu; as viúvas da ditadura entoando o "vem, vamos embora" do vermelhíssimo Vandré; o travesseirinho de Jair na embaixada da Hungria; o selfie da muamba, do pai milico do ajudante de ordens; as hemorroidas e trozobas das reuniões secretas do Planalto; o bangue-bangue da Zambelli—, esse horror todo seria cômico, não fosse trágico.

Ricardo Pereira ri, à distância, com a liberdade de quem não encarou o Chega no poder e, talvez, nunca venha a encarar. Mas, na república da ex-colônia, uma mamadeira de piroca faz diferença na eleição.

E por falar em piroca, copio, na sequência, um trecho do depoimento do assassino profissional Ronnie Lessa, pescado e repassado pela jornalista Carol Pires: "Ronnie asseverou que, naquele dia doze, estava na companhia de seu amigo André Luiz Fernandes Maia, vulgo Doutor Piroca, tomando uísque e obcecado para encontrar uma alternativa viável para a execução".

A turma do Ronnie faria a festa de Millôr Fernandes: Dudu do Clone, Claudinho da Carga, o Orelha, o Serginho do Homicídio, o Carlos Miliciano, o Perneta, o Fininho, o Renatinho Problema, o Gordão e o Gargalhone. É a Praça da Alegria da Muzema, o Zorra Total da Guanabara.

Como segurar o frouxo diante da negativa de Tamara Garcia, filha do bicheiro Maninho, de mostrar o rosto no documentário "Vale o Escrito", enquanto a irmã gêmea, gemêa univitelina, Shanna Garcia, aparece de lado, de frente e de costas? Ou evitar o deboche com a dupla de juízes gagás, um chamado Sardinha, que não sabem como flertar com uma mulher sem partir para o ataque?

É gargalhada na veia. Ou seria, não fosse a fogueira da inquisição dos livros didáticos, a piada grossa do golpe de Estado, o desmonte do Rio de Janeiro, o fim do Estado laico e a execução de Marielle Franco.

A democracia resiste com memes de casamento do Macron e do Lula, é novela das seis perto desta desgraça sem graça.

Ricardo, mande um cravo para mim.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.