Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Sejamos conservadores, até o tsunami passar

A indignação que tomou Paris em 1968 hoje lota a Paulista para pedir a volta da ditadura

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Quando jovem, o imortal Antônio Cícero decidiu estudar filosofia na Europa. Maio de 1968 mal completara um ano e o moço sonhava ser aluno de Gilles Deleuze, na Universidade de Vincennes, em Paris.

Proibido pelo pai de se meter no epicentro do movimento estudantil, que sacudia a tradição acadêmica da época, o poeta, a contragosto, se inscreveu na Universidade de Londres. Enquanto esperava pela aprovação da matrícula, Cícero quis ver de perto o que o zelo paterno lhe negara e foi escondido à cidade luz.

A visita foi o oposto do esperado. A faculdade parisiense, trincheira da revolução juvenil, lhe pareceu pecar pela falta de rigor, fervilhando em assembleias, reivindicações e banheiros quebrados para abolir a divisão de gêneros. Cícero voltou para Londres aliviado. Lá, teve a sorte de usufruir o melhor dos dois mundos. De um lado, a convivência com os tropicalistas exilados, do outro, a austeridade do juízo analítico.

O pouco que sei de Deleuze aprendi com Eduardo Viveiros de Castro, no livro "Metafísicas Canibais". Nele, Castro se vale do conceito de rizoma para fundamentar sua certeza de que o pensamento ameríndio não é um galho perdido da árvore de Hegel, mero apêndice da dialética dos europeus "acumuladores de mundos".

"Metafísicas Canibais" propõe uma antropologia que pense com outras mentes, humanas e não humanas. Longe da impressão caótica que a Universidade de Vincennes causou em Cícero, a defesa de Gilles Deleuze e Félix Gattari de Castro é rigorosíssima e eruditíssima.

Desde o seu surgimento, o pós-estruturalismo anti-iluminista, antirracionalista e antieurocêntrico frutificou em políticas ligadas aos direitos das minorias, das mulheres, dos negros e dos povos originários das Américas até se transformar em alvo da guerra ideológica da extrema direita insurgente. Estamos no meio de uma contrarrevolução populista, de cunho fascista, que tem conseguido capturar e inverter conceitos caros aos progressistas, como o da liberdade de expressão.

A indignação popular, que tomou as ruas de Paris no Maio de 1968, hoje lota a Paulista para pedir a volta da ditadura militar. No Senado, Flávio Bolsonaro defende a "PEC das Praias", que promoverá a multiplicação de resorts sobre o que resta da vegetação nativa, com o argumento de que a comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, ganhará direito de propriedade sobre seus lotes.

Um amigo me indicou um excelente podcast, chamado Past, Present and Future, que faz uma análise pertinente sobre essa contrarrevolução. Conduzido pelo professor de história e política de Cambridge David Runciman, o programa se debruça sobre grandes ensaios da literatura, entre eles o "Contra a Interpretação", de Susan Sontag.

Sobre um fundo que sugere rua com manifestação política e gás lacrimogêneo, um homem sinistro atira emojis de cocôs como se fossem bombas. À direita da ilustração, um texto ocupando a altura do homem sinistro, escrito com letras tipo cartaz de protesto, diz: Morram todos, menos eu.
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres de 12 de junho de 2024 - Marta Mello/Folhapress

Escrito na juventude da escritora e filósofa americana, "Contra a Interpretação" demole o palavrório crítico que vive de interpretar e definir obras de arte, como se tivéssemos que encarar um filtro de análises sufocantes até captar o sentido oculto de um artista. Susan advoga em favor da experiência direta da forma com que uma obra se apresenta, capaz de "revelar a superfície sensual da arte, sem interferir na mesma".

Runciman se utiliza da crítica de Sontag para refletir sobre a ascensão de Donald Trump na política americana. O erro no enfrentamento do republicano, segundo ele, estaria na crença de que suas palavras fazem sentido, ou que poderiam provar, perante uma corte, que o ex-presidente esteve diretamente envolvido na invasão do Capitólio.

O discurso de Trump é o que Hamlet vê nos livros, palavras, palavras, palavras. Abominável livre pensar, verborragia ultrajante, fluxo de consciência agressivo, voraz e baixo, como uma piada de mau gosto.

Trump jamais esboçou uma ideia original, ou conservadora, sobre política. Ele é radical porque se nega a seguir convenções. Trump, queira ou não, é vanguarda. A vanguarda da política contemporânea. Não há novo pensamento, há nova forma, como prega Sontag, radical, contagiante e sensualmente pornô.

Nada obriga a vanguarda a ser progressista, ou liberal, isso é um erro de análise, conclui Runciman.

Vanguarda é mudança. É a motosserra de Milei; o pão com leite moça do Bozo; é o post de Fidias Panayiotou, que garantiu um assento no Parlamento Europeu a um blogueiro ignorante; é a blitzkrieg de selfies e insultos na Comissão de Ética, que fez Erundina parar no hospital.

O governador Tarcísio de Freitas defende uma política de segurança mortífera, advoga pela escola militar e se vangloria de ser um bolsonarista raiz. Nada disso assusta o centrão Faria Lima, que já pende para o engenheiro.

Façamos como o jovem Cícero e sejamos conservadores, até o tsunami passar.

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