Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Livro faz uma investigação minuciosa sobre a evolução do sentido de ser

Obra de Bruno Snell pesquisa caminho da literatura, poesia, teatro e filosofia até se chegar à ideia de mente e alma

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Os dois anos de pandemia foram duros de suportar, mas confesso que o isolamento me trouxe uma grande alegria, ter tido tempo para ler a "Ilíada" e "A Odisseia", de Homero.

"A Odisseia" é imensa, extraordinária, mas, comparada à "Ilíada", é quase doméstica. O astuto Odisseu negocia saídas, evita feitiços, reconquista o lar e, apesar de perseguido e náufrago, parece possuir alguma ingerência sobre o próprio destino. Já os heróis da "Ilíada" são como fantoches nas mãos do Olimpo, mortais acossados pelo desejo volúvel dos eternos. A "Ilíada" é sobrenatural.

No plano de fundo, vemos desenhado de forma insinuada o morro Dois Irmãos e a natureza adjacente, simbolizando a vista icônica da praia de Ipanema. Em primeiro plano, há uma mulher deitada na areia, lendo um livro. Vemos apenas suas pernas cruzadas, e os braços e mãos segurando o livro aberto. Do lado direito do livro, um texto digitado em azul indica o título do livro e seu autor: "The discovery of the mind", Bruno Snell. Do lado esquerdo do livro, uma coluna de texto tb digitado em azul mostra nomes de filósofos, escritores, poetas e dramaturgos gregos que são abordados no livro sendo lido: Homero, Hesíodo, Heráclito etc. (são 10 nomes).
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres de 25 de julho de 2024 - Marta Mello/Folhapress

Sujeitos às desavenças e ao ciúme, os deuses olímpicos cultivam predileções, enfrentam crises conjugais e guardam estranha semelhança conosco. Talvez, a condição de imortais os impeça de se aniquilarem entre si e, por isso, venham ao mundo, como demônios alados, para usarem os homens como instrumento de suas ações. A fúria de Heitor, de Aquiles e a sanguinolência explícita dos combates se contrapõem, com igual medida, à dor e à fragilidade humana. É de uma grandeza acachapante, difícil de alcançar.

Meu filho mais velho está no mestrado de filosofia e me indicou um livro precioso, de 1953, que ajuda a entender o impacto da "Ilíada" no leitor desavisado. "The Discovery of the Mind", de Bruno Snell, para o qual não encontrei tradução em português, investiga o longo caminho, de Homero a Virgílio, percorrido pela literatura, a poesia, o teatro e a filosofia ocidental, até se chegar à ideia de mente e alma.

Em Homero, as palavras "psyche", "thymos" e "noos" se aproximam da noção de alma, sem possuir sentido idêntico ao de hoje. "Psyche" é o sopro de vida que nos sai pela boca no momento da morte; "thymos", o impulso vital, força motriz dos membros; e "noos" é aquilo que nos faz ver e imaginar. Nos três termos, corpo e alma ainda não se apartaram.

Na "Ilíada", toda decisão humana é fruto de intervenção divina. Snell usa de exemplo uma cena em que Aquiles ameaça sacar a espada contra Agamenon, mas é demovido da ideia por Atena. O autor poderia ter escrito que o herói ponderou e desistiu do ataque, mas não. Aquiles não possui o dom da reflexão, ela vem de fora, dos deuses, assim como o juízo, a temperança, a ira e o ódio.

Hesíodo, com "Os Trabalhos e os Dias", faria a passagem entre o heroísmo épico e a vida no campo. E dois séculos transcorreriam até que Heráclito separasse a carne do espírito, deslocando o logos para outra dimensão, a das profundezas do ser.

A introjeção permitiu à humanidade tomar posse de seus sentimentos. Poetas líricos, como Sapho e Pindar, passam a se referir a um profundo pensar e sentir, inexistente em Homero. "Há quem diga que um exército de cavaleiros é o que há de mais belo sobre a terra escura, mas eu digo que a coisa mais bela que existe é aquela a quem amo", escreve Sapho.

As tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes fariam a revolução, promovendo a independência definitiva dos entes que habitam o andar superior. Demasiado sutil para o palco, o delicado desamparo da poesia lírica foi substituído pela ação e o realismo da cena. A premência do agir faz nascer algo novo, a consciência dos personagens.

Em "As Suplicantes", de Ésquilo, um coro de Danaides escapa do Egito e pede asilo na cidade de Argos. Diante do dilema de negar abrigo às fugitivas e ofender a Zeus, ou acolhê-las e comprar uma briga com os vizinhos, Pelasgos, o rei, pede um instante para pensar. "Pense", responde o coro, "pense e seja nosso protetor". Na "Ilíada", ninguém para para pensar.

Na "Medeia", de Eurípedes, a esposa traída, por livre e espontânea vontade, envenena os filhos para se vingar do marido. "Sei dos crimes que estou prestes a cometer, mas minha raiva é maior do que a minha razão." Eurípedes é como Nelson Rodrigues, amoral demais para uma sociedade que se pretende civilizar.

Os parricidas e infanticidas dos trágicos devem ser responsáveis pela expulsão dos poetas de "A República" de Platão. O ciclo das tragédias termina com a terra arrasada de Eurípedes e, graças ao uso do artigo definido, Sócrates e Platão substantivam adjetivos como virtuoso, bom, belo e justo, generalizando-os em conceitos como a virtude, o bem, o belo e o justo.

"The Discovery of the Mind" vai muito além deste tosco resumo, trata-se de uma investigação minuciosa, ancorada na gramática e na linguagem, sobre a evolução do nosso sentido de ser. Através de séculos de mudanças no emprego dos verbos, adjetivos e substantivos, dos pronomes e artigos, Snell esclarece o porquê do estupor da "Ilíada" numa garota de Ipanema, como eu.

Rogo à alguma editora pátria que o traduza e publique.

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