Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu Olimpíadas 2024

No surfe, todos sabem que ganhar ou perder é irrelevante

E a imprevisibilidade do mar destoa da obsessão milimétrica das demais arenas

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Com o auxílio luxuoso dos comentários de Milton Cunha na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris 2024, a CazéTV merece medalha de ouro pela escolha da mesa redonda do surfe, formada por Rick Lopes, Marcelo Trekinho, Pedrinho Brasil e Pedro Scooby no posto avançado, entrevistando atletas recém-saídos do mar de Teahupo'o, no Taiti.

Fui convencida a trocar de canal pelos meus filhos, que garantiram a diversão da família em meio ao reinado de onomatopeias da bancada. Cada caldo, tubo e rasgada eram sublinhados pelos Plauuuuu!!!, Uhaaaaauuu!!! e Uhooooouuuus!!! da personal sonoplastia.

No lugar da formalidade técnica, a euforia de quem trocou a sala de aula pelas ondas no ensino médio. E toma Puuuutz!!!, Suuuuurreal!!!, Raaaasga!!!, Caraaaaaca!!!!, Mermãoooo!!!! e Quiondaéessa?! A experiência só não deve ter sido agradável para aqueles que nutrem aversão pelo sotaque carioca. O chiado era tão carregado que beirava o dialeto.

Foi como participar de um churrasco ao poente em Saquarema, entregue à livre associação de ideias, depois de rolado o cone em homenagem ao sagrado Jah.

Na semifinal, quando as ondas viraram as costas para Medina, afastando-o da disputa pelo ouro, Pedro Brasil puxou o coro "Netuno, briiiiiing ondulations", errando o mantra "Netuno, pleeeeease ondulations". Vai ver que o deus se irritou. E na última descida de Tatiana Weston-Webb, que ficou com a prata por míseros 0,18, a turma esteve perto de infartar.

A ilustração é toda em tons de azul, evocando o mar. Um surfista em cima da prancha está pegando uma onda grande. Do lado esquerdo da ilustração, há três palavras com exclamações, escritas à mão --- foram usadas por comentaristas surfistas entusiasmados durante transmissão dos jogos olímpicos: Plau! Surreal! Caraca!
Ilustração de Marta Mello para a coluna de Fernanda Torres de 7 de agosto de 2024 - Marta Mello/Folhapress

Dias antes, no confronto entre Gabriel Medina e João Chianca, Trekinho arriscou a teoria de que Medina foi abduzido por um disco voador na adolescência e, com corpo remodelado, retornou à Terra como Surfista Prateado. "Já Kelly Slater", continuou o comentarista, "esse é alienígena mesmo". A julgar pelo voo de Super-Homem do campeão brasileiro, eternizado pela foto em que levita ereto sobre o oceano Pacífico, a brincadeira procede.

A hipótese da abdução de Medina e da origem extraterrestre de Slater também vale para Rebeca Andrade e Simone Biles. Mas americano não conta, americano é criado para vencer ou vencer. Pouquíssimos choram no pódio, como se a medalha não fosse mais do que a obrigação.

Na alegria e na tristeza, com exceção da sereníssima Rebeca, brasileiro reza, chora, ajoelha e agradece a Deus. Sobreviventes na adversidade, somos 200 milhões de cavalos Caramelo da cumeeira.

A psiquê dos povos é uma realidade. A japonesa Uta Abe surtou após perder uma luta por ipon para Diyora Keldiyorova, do Uzbequistão. Abe acumulava uma eternidade de conquistas na carreira e não se preparou psicologicamente para a derrota. Num país que fez do haraquiri uma arte, o suicídio é alívio honroso para a angústia do vexame público.

Eu, que não venço nem no par ou ímpar, vinguei numa profissão em que o fracasso é relativo. Você pode sempre alegar que não foi compreendido, passar o óleo de peroba na cara e seguir adiante. Mas o esporte é cruel, é "uma vida por um dia", como bem definiu a brasileiríssima Bia Souza, medalha de ouro no peso-pesado feminino do judô.

A exigência da perfeição provocou um apagão mental em Simone Biles, fazendo-a abandonar as Olimpíadas de Tóquio. Biles se recuperou com ajuda de terapia, voltou mais feliz e livre da doença da competição. Sua reverência a Rebeca Andrade foi genuína. Com um armário em casa repleto de premiações, a GOAT venceu de si mesma e atingiu o nirvana da generosidade.

No vai e vem dos canais que cobrem as Olimpíadas, dei com o documentário "Kissed by God", sobre o surfista Andy Irons, no canal Off. Bipolar, fominha, talentosíssimo e com sérios problemas de adição em opioides, o bad boy Irons foi o maior adversário de Kelly Slater entre 2002 e 2007, numa disputa que escalou para a animosidade.

Irons morreu de falência do coração, sozinho, num quarto de hotel no Texas. Sua mulher daria à luz o primeiro filho duas semanas após a tragédia. Slater se emociona ao lembrar que o antagonista, pouco antes de embarcar para um campeonato em Porto Rico, do qual não retornaria, lhe propusera um documentário sobre a rivalidade que corroeu o fígado dos dois.

O tudo ou nada é o drama operístico do esporte, sem ele não teria graça. A imprevisibilidade do mar, no entanto, destoa da obsessão milimétrica das demais arenas. Seria lamentável que o surfe olímpico acabasse confinado a uma piscina de ondas, porque o que mais me encantou na cobertura da CazéTV de Teahupo'o, além do impagável idioma dos parafinados, foi o senso de comunidade praiano dos comentaristas.

Todos ali sabiam que ganhar ou perder é irrelevante, tanto diante da calmaria quanto da beleza de um swell histórico.

Errata: o livro "The Discovery of the Mind", de Bruno Snell, tem, sim, uma edição em português. Foi publicado pela editora Perspectiva com o título "Cultura Grega e as Origens do Pensamento". Vale muito.

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