Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

No meio do caminho, um 'acha que'

Quando um verbo jornalisticamente fraco desvia a atenção de um bom texto

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Achar: julgar, supor, diz o dicionário Houaiss. Pela falta de assertividade, não é o verbo que se quer encontrar numa reportagem investigativa.

Porém, foi ele que saltou do texto da manchete da Folha do último domingo (6), “Ex-assessor implica ministro e Bolsonaro em caixa 2 do PSL”.

Segundo a Folha, um depoimento dado à Polícia Federal e uma planilha apreendida em uma gráfica sugerem que dinheiro do esquema de candidatas laranjas do PSL em Minas Gerais foi desviado para abastecer, por meio de caixa dois, as campanhas do presidente Bolsonaro e do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.

ilustração ombudsman 13.out.2019
Carvall

Logo no segundo parágrafo, é dito que, nesse depoimento, o ex-assessor parlamentar de Álvaro Antônio e coordenador de sua campanha a deputado federal, Haissander de Paula, disse à PF que “acha que” parte dos valores das campanhas femininas foi usada para pagar material de campanha do ministro e de Bolsonaro. 

Alguns leitores disseram que o jornal valorizou algo de pouco peso. Outros esperavam mais e se sentiram frustrados. Pretendo avaliar os dois lados. 

 

Desde fevereiro, uma série bem apurada de cerca de 40 reportagens vem mostrando a existência de um esquema de desvio de verbas de candidaturas femininas do PSL —o chamado “laranjal” do partido.

Em abril, a Folha já apontava que a PF via participação do ministro no esquema. No último dia 4, ele foi denunciado por crime eleitoral.

A matéria mais recente mostra pela primeira vez indícios de uma conexão entre as candidaturas de fachada e a campanha de Bolsonaro.

Ocorre que essa conexão aparece não apenas no depoimento vacilante de Haissander, mas também numa planilha encontrada numa gráfica que prestou serviços ao PSL.

Advogados da área eleitoral consideram uma planilha apreendida em uma empresa prestadora de serviço, com referência ao fornecimento de material eleitoral, valores e nomes de políticos, um indício consistente de crime eleitoral.

Eles afirmam também ser razoável supor que as anotações “NF” e “out” encontradas no documento tenham sido interpretadas pela PF como “nota fiscal” e pagamento “por fora”.

O mesmo não acontece com o depoimento de Haissander. A fragilidade da fala de alguém que “acha que” o destino da verba das candidatas laranjas tenha sido as campanhas de Bolsonaro e de Álvaro Antônio ofusca a matéria.

A condição em que se deu o depoimento do ex-assessor também chama a atenção. Ele foi ouvido duas vezes e, na segunda, na presença de um advogado, voltou atrás. Por que não explicar isso melhor?

Na minha avaliação, o “acha que” enfraquece a notícia, mas a matéria seguiria bem fundamentada com a planilha e outras partes do depoimento.

Embora não tenha sido firme em relação ao destino do dinheiro na campanha, Haissander disse que, “com certeza”, recurso dado a uma das candidatas não foi usado por ela. Ou seja, pela primeira vez, alguém do núcleo da campanha do ministro reconheceu oficialmente a existência do esquema revelado pela Folha.

Muitas vezes, o repórter decide pela publicação de uma reportagem, pois conta com informações que respaldam o que foi apurado, mas não as compartilha para preservar as suas fontes.

O problema é que o leitor não sabe disso. A saída é municiá-lo com o máximo possível de informações, ainda que pareçam laterais —o que poderia ter sido incrementado. 

Leandro Colon, diretor da Sucursal de Brasília, e Eduardo Scolese, editor de Poder, disseram à coluna que o depoimento em que se baseou a reportagem —validado pela Justiça e essencial ao caso— é de pessoa apontada como um dos operadores do esquema, que foi presa e denunciada.

Vinicius Mota, secretário de Redação da Folha, diz que a reportagem estava solidamente apurada e revelava desdobramentos importantes de um caso descoberto pela Folha, envolvendo o partido do presidente e um de seus ministros, denunciado sob a acusação de falsidade ideológica eleitoral, apropriação indébita de recurso eleitoral e associação criminosa. Por tudo, diz Mota, foi justificadamente alçada à manchete do jornal.

Nenhum dos três comentou o “acha que”.

Em reação à matéria, Bolsonaro disse que a Folha desceu às “profundezas do esgoto”. No meio da semana, porém, iniciou um processo de se descolar do partido, em meio às denúncias que envolvem a sigla.

Ainda é preciso entender por que o ministro do Turismo permanece firme no cargo. Igualmente, entender se é possível gastar apenas R$ 2 milhões numa campanha presidencial, mesmo que parte dela tenha sido passada no hospital.

É trabalho da imprensa mostrar isso sem deixar que, no meio do caminho, um verbo desvie a atenção de um belo esforço de reportagem.

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