Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Bolsonaro e o coronavírus

A gripezinha que não derruba, mas tira protagonismo do presidente no noticiário

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Na última semana, a grande imprensa não deixou, como esperado, de dar espaço às declarações do presidente Jair Bolsonaro, mas dedicou menos energia a elas.

Do lado de Bolsonaro, seu comportamento agressivo, muitas vezes incompreensível, não mudou.

O mundo, no entanto, se movimenta para entender melhor os efeitos do novo coronavírus.

Ilustração da coluna Ombudsman do dia 22 de março de 2020 um desenho de uma injeção de dentro dela o mapa mundial, na ponta da agulha em forma de uma gota o mapa mundial
Carvall

Em meio à sede de informação, à angústia causada pelas primeiras mortes e ao medo do imponderável, o presidente encerrou a semana dizendo que, depois da facada que recebeu, não vai ser uma "gripezinha” que vai derrubá-lo.

De fato, o coronavírus não derrubou, mas parece ter encoberto o protagonismo de Bolsonaro no noticiário nacional.

No início da semana, o presidente surgiu apenas na segunda metade do principal telejornal brasileiro, o Jornal Nacional, o que não é comum.

Uma busca rápida no site da Folha mostra que o nome Jair Bolsonaro aparece 104 vezes no jornal entres os dias 7 e 13 de março e 115 na semana seguinte. No mesmo período, o termo coronavírus salta de 164 para 371 menções.

O presidente se esforçou para atrair a atenção, não exatamente do modo que se esperava da mais importante autoridade da República.

No domingo (15), para surpresa de muita gente, ele ignorou o que parece ter sido obrigado a dizer dias antes e, em meio à disseminação de um vírus altamente contagioso, compareceu às manifestações a favor de seu governo e contra o Congresso e o STF (Supremo Tribunal Federal).

Depois disso, ignorando as críticas por ter menosprezado os riscos à sua saúde e, sobretudo, à saúde da população, afirmou que o país não podia entrar numa “neurose”, que está havendo uma “histeria”, que a doença “não é tudo o que dizem” e que não dá para jogar em suas costas “uma possível disseminação do vírus”.

O que o presidente fala segue sendo noticiado e acompanhado de avaliações e críticas, mas deixou de pautar (ainda que momentaneamente) a grande imprensa.

Premido pela realidade, o noticiário foi atrás de explicar a pandemia e suas consequências, os cuidados para evitá-la, a situação do sistema de saúde e o que o governo está fazendo para contornar a crise sanitária, social e econômica que se aproxima.

Perdida a centralidade, o presidente parece ter sentido o baque.

Na segunda-feira (16), ao anunciar um pacote para tentar conter os efeitos do vírus na economia, o ministro Paulo Guedes fez questão de ressaltar mais de uma vez a responsabilidade do presidente em unir o grupo para discutir as medidas.

No fim da semana foi a vez de o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta repetir a ladainha—como se fosse necessário enfatizar que é o presidente da República, principalmente em situações de calamidade, quem conduz toda a sua equipe e a nação.

O fato é que a crise desencadeada pelo coronavírus faz as pessoas prestarem cada vez mais atenção a tudo o que Bolsonaro tem feito questão de desprezar: a ciência, a situação de precariedade de desempregados e trabalhadores informais e a própria imprensa—que se reafirma como um serviço confiável de informação de utilidade pública.

O tom da cobertura da Folha sobre o coronavírus tem sido didático. Há um cuidado em apresentar números e ouvir especialistas, os gráficos são atraentes e os relatos atendem a curiosidade dos leitores.

Ainda precisa ser mais bem explorada pelo jornal a contradição entre o que dizem os governos ("Governo federal prevê força policial para cumprir ordens de isolamento e quarentena") e as condições de trabalho, de moradia e saneamento que envolvem grande parte do país. Assim como outros debates precisam ser ampliados, como aquele em torno do alcance da testagem da população.

A Folha também pode explicar melhor o que haverá de dinheiro novo para socorrer os mais vulneráveis nessa situação.

Na sexta-feira (20), todos os grandes jornais ressaltaram que o governo vai “dar”, “compensar” ou “bancar” parte dos salários que poderão ser reduzidos junto com a jornada de trabalho, mas o grosso dos recursos parece ser adiantamento do seguro-desemprego.

As respostas a essas questões não têm sido encontradas nos pronunciamentos feitos por Bolsonaro. A realidade, então, se impõe à cobertura jornalística, redimensionando as falas do presidente e trazendo-o mais próximo da estatura que tem.

Esse é um dos possíveis aprendizados para o jornal deixados pelo coronavírus: os holofotes se deslocaram daquilo que o presidente diz para aquilo que seu governo propõe—o que atende a um pedido que os leitores da Folha vêm fazendo já há algum tempo: “Mirem no que o governo faz e no que ele não faz”.

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