Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Dois escândalos e um erro

Cobertura só tem a ganhar quando não cai na tentação da superficialidade

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Dois assuntos daqueles que causam comoção e um erro reconhecido deram o tom à cobertura da Folha na semana.

O primeiro deles foi o habeas corpus concedido pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello ao líder de facção criminosa André Oliveira de Macedo, o André do Rap.

Ilustração de máquina de escrever com vários papeis coloridos
Carvall

Depois de alguma demora para captar o apelo da história, a Folha decidiu dar mais destaque ao caso—já bem apurado em reportagem de sexta (9) no site. Buscou explicar as circunstâncias da soltura, realizada de modo quase automático, de um homem condenado em duas instâncias, com base em artigo recente que diz que as prisões preventivas devem ser revisadas a cada 90 dias, sob pena de tornar-se ilegal a prisão.

Num caso como esse que, de modo compreensível, atrai todas as atenções, é importante ter uma noção mais geral do quadro—algo nem sempre oferecido pela imprensa.

Nesse quadro, a mesma lei usada para soltar o traficante internacional de drogas é vista como um dispositivo relevante para impedir que sejam mantidas indefinidamente na prisão pessoas sem auxílio jurídico, em geral jovens pobres e negros, presos muitas vezes por crimes menores.

A Folha apontou a questão em manchete já na segunda (12), ainda que de forma pouco aprofundada. Algo que outros veículos só fizeram com maior ou menor ênfase depois que, no meio da semana, o ministro Luís Roberto Barroso disse que a lei tem a virtude de permitir que um preso não fique esquecido.

Outro fato relevante foi o furo dado pela Crusoé na quarta (14) sobre operação da PF que, investigando suspeitas de desvio de dinheiro público destinado ao enfrentamento da Covid-19, chegou ao então vice-líder do governo, o senador Chico Rodrigues (DEM-RR).

Durante boa parte da quinta (15), a Folha estampou no site a manchete "Bolsonaro tira senador de cargo de liderança e tenta se desvincular de flagra de dinheiro entre as nádegas".

Leitor achou a manchete de baixo nível e viu nela o objetivo de "tentar atingir outro alvo".

Como Bolsonaro disse em algumas ocasiões, a proximidade entre ele e o senador tem longa data. Além disso, ainda que imaginar a cena da apreensão das notas em lugar inusitado possa ser intolerável para alguns, o fato é que os jornais seguiram a descrição feita pelo delegado do caso.

Não foi aí que a Folha errou o tom, mas em rede social, onde tentou fazer graça sob o risco de despolitizar o assunto.

"Bolsonaro 'dá voadora' e tira vice-líder flagrado com dinheiro na cueca", dizia o tuíte, em referência ao fato de que o episódio ocorreu horas depois de o presidente ter dito que daria uma voadora no pescoço de quem praticasse corrupção em sua administração.

Ao dispensar o vice-líder, o presidente reagiu a uma situação politicamente incontornável. Sua ação não foi a de um mestre das artes marciais contra a corrupção. "Nessas horas, dá uma vergonha de ser assinante da Folha", disse um leitor.

Na mesma semana turbulenta, a Folha reconheceu um erro em primeira página—o que não é todo o dia que acontece.

A reportagem que foi manchete do jornal no domingo (11) dizia que o Brasil é o país que mais expandiu gasto público entre 2008 e 2019. Na quarta (14), após economistas terem apontado o erro em redes sociais, veio a correção. A matéria usou dados de 2008 e 2009 cuja metodologia é distinta da empregada a partir de 2010.

Porém, o texto que trazia a correção enfatizou que, mesmo sem os dois anos, a escalada da despesa do governo seguia sem paralelo entre as principais economias do mundo (uma "anomalia").

Ainda que os números estivessem desde o início corretos, a reportagem merecia reparos. Segundo ela, a escalada do gasto se deveu principalmente aos benefícios sociais. Isso não faz sentido em um país tão desigual? Foi tudo obra de pura irresponsabilidade?

O texto não ouviu especialistas em finanças públicas para contextualizar os fatos, não explicou o significado do retrato apresentado, nem fez conexão com o presente.

Também não citou informações importantes, como o fato de o país ter concluído uma reforma da Previdência, muito defendida justamente para conter os altos gastos com aposentadorias e pensões, tampouco indicou como o PIB se comportou no período.

"Sou leigo em economia e procurei entender a saraivada de números e seus significados. Parece que os dados foram utilizados para confirmar uma tese do autor ou do jornal e só isso", disse um leitor.

Entre economistas, crescem as preocupações com o endividamento do país e as condições de pagamento da dívida de prazo mais curto, o que indica que um esforço maior de contextualização teria feito bem à reportagem. No mínimo, teria afastado a impressão do leitor de que a Folha vez ou outra segue agenda pouco afeita ao contraditório, injustificável no conteúdo noticioso.

A cobertura só tem a ganhar quando não cai na tentação da superficialidade de um tuíte.

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