Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

Penso no humorista do Titanic sempre que tento fazer rir na pandemia

A comédia é o pandeiro das artes, vai bem com um pouco de tristeza, mas destoa na tragédia

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Nenhum músico do Titanic sobreviveu ao naufrágio, mas reza a lenda que tocaram até o fim. Pelo menos é o que diz o filme. E os médicos legistas.

O corpo do violinista foi encontrado dez dias depois, ainda abraçado ao instrumento. Pode ser que estivesse apenas tentando usá-lo como boia. Naquele momento, pela primeira vez, deve ter se arrependido de não tocar contrabaixo.

Não tenho pena do violinista, no entanto. Acho que ele teve sorte. Embora não sejam as condições ideais para um concerto, o instrumento se adequa muito bem a uma situação de naufrágio. Diria mesmo que é o instrumento ideal.

O mesmo não pode ser dito do piano, um troço complicado de tocar correndo de um lado para o outro. Ou do pandeiro, portátil mas inapropriado pra ocasião.

Fora que todo músico está acostumado a tocar em situações adversas. O que é um naufrágio perto de uma churrascaria lotada? Ou, pior, de uma churrascaria deserta? De uma praça de alimentação?

Aposto que havia funcionários mais infelizes naquele naufrágio. Tenho pena mesmo é dele, coitado: o comediante do Titanic. Ninguém sequer lembra do desgraçado. James Cameron nem o pôs no filme.

Mas ele estava lá, afinal todo cruzeiro tem um show de comédia, ou pelo menos um animador de plateia.

palhaço toca corneta na proa de navio que naufraga no mar
Ilustração de Catarina Bessell para a coluna de Gregorio Duviviver de 7 de abril de 2021 - Catarina Bessell/Folhapress

Imagino o sujeito no convés encharcado, em meio ao quebra-pau, tentando emplacar um stand-up: “Sabe uma coisa que eu não entendo, gente? Casamento! Quem é casado levanta a mão!” Ao perceber que o texto não funciona, ele então passa a apelar pra trocadilhos. “Segura no mastro! Opa, no meu, não! Aquele iceberg é minha namorada? Porque tá me dando gelo!”

É nesse comediante do Titanic que penso toda vez que, em meio à carnificina dessa pandemia, me vejo na tarefa ingrata de tentar fazer rir.

A música, em meio à chacina, nos conforta. O mesmo não pode ser dito do humorista. A comédia é o pandeiro das artes. Vai bem com um pouco de tristeza, mas destoa na tragédia. Difícil fazer rir com 4.000 mortes por dia.

Cá estou eu, no entanto, abraçado ao meu pandeiro, por um motivo só: não sei fazer outra coisa. Daqui a um tempo, quem sabe, tudo isso será muito engraçado. Será possível rir em meio a um naufrágio? Acredito que sim, desde que tenha bote de salva-vidas pra todo o mundo. Talvez, com outro capitão.

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