Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

A pandemia trouxe muita gente nova para a turma dos sem foco

Déficit de atenção piorou e cresceu muito durante o coronavírus, complicando o que já era complicado

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Evito usar a palavra call. Não pelo anglicismo, mas porque não sei por qual pronome tratá-la. Um call? Uma call? Ninguém sabe. Mas também odeio a palavra videochamada, e gosto menos ainda da gigantesca videoconferência. Resta a simpática palavra zoom, que passou a designar qualquer videochamada, mesmo que não seja feita por Zoom —esse aplicativo que, curiosamente, não dá zoom.

Nunca fui um perito na arte de prestar atenção. Na escola, passava metade da aula distraído, e a outra metade distraindo os colegas. De lá pra cá, nada mudou. Escrever crônica é uma maneira de rentabilizar o seu déficit de atenção.

O isolamento piorou o que já era complicado. Já existia o celular, esse potencializador de dispersos, mas sempre relutei em olhar pra tela durante uma conversa —não por falta de vontade, mas por vergonha.

Sou distraído, mas também sou carente de aprovação, e talvez mais carente que distraído,
então aprendi como ninguém a fingir que estou ouvindo.

Até que a pandemia nos relegou a esse zoom interminável. Não sei quanto a vocês, mas passo o dia emendando zooms.

Em 15 meses de isolamento, acabei desenvolvendo o hábito de abrir 30 abas por reunião e aperfeiçoei a técnica de fazer sem que ninguém perceba. Numa reunião longa, consigo pagar cinco contas, compartilhar três notas de repúdio e encontrar o apartamento perfeito pra caso algum dia eu me mude pra Montevidéu.

Colagem mostra Duviver dentro de uma tela de computador
Ilustração de Catarina Bessell para coluna de Gregório Duvivier de 16.jun.2021 - Catarina Bessell

Antes, quando alguém contava uma história envolvendo uma pessoa que eu não conhecia, guardava o nome dela e esperava a primeira oportunidade pra jogar no Google. Hoje mantenho o sorriso e o olhar atento enquanto busco o nome da pessoa citada. Antes do final da história já sei onde ela passou as férias, conheço todo o seu currículo Lattes e os processos que correm contra ela na Justiça.

Achei que fosse o único. Até que comecei a reparar. E vi que, enquanto eu falava, crente que estava sendo ouvido, os olhares se esvaziavam. Vagavam da esquerda pra direita, como quem lê. Experimente contar uma história envolvendo uma pessoa nova. Pronto. Ninguém mais ouve.

Se cada um, como eu, estiver abrindo 30 abas, numa reunião com dez pessoas são 300 abas. É como se estivéssemos conversando debaixo de uma montanha de jornais, álbuns de infância, revistas de fofoca e processos criminais.

A pandemia trouxe muita gente nova pra turma dos sem foco. Bem-vindos. Não reparem a bagunça. Sim, eu sei que é impossível.

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