Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Marília Mendonça expôs contradições com seu 'feminismo de patroa'

Sem idealizações, precisamos ponderar o quanto essa imagem popular no sertanejo aponta para o fim das desigualdades

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Há três meses morreu Marília Mendonça em um trágico acidente de avião. Naquele 5 de novembro escrevi uma coluna que em menos de um dia foi cancelada, sob a alcunha de "machista", "misógina" e "gordofóbica". Respondi às acusações na semana seguinte, com o texto "Tribunal digital".

Espero que agora, passada a comoção da morte que a todos altera, possamos discutir algumas questões levantadas pela cantora em sua carreira com ponderação. É de se esperar que o debate civilizado possa de fato acontecer, pois a complexa trajetória de Marília merece considerações que vão além da repercussão atropelada pela tragédia.

Ainda que parcialmente, é possível ver Marília como uma expoente feminista. Afinal, seu feminismo real tornou possível às multidões de mulheres pelo Brasil afora manifestar a plenos pulmões a liberdade de agir e pensar como todo homem em nossa sociedade quase sempre pôde fazer.

Sair para beber, se relacionar, ser ousada e livre de julgamento alheio: tudo isso foi cantado por ela em diversas canções. E ela conciliava grande parte do que cantava à sua vida pessoal, dando lastro à personagem. Este lado de Marília precisa ser sempre lembrado.

Mas como todo ser humano realmente existente, a goiana teve contradições e ambiguidades. O feminismo de Marília tinha paradoxos que precisam ser refletidos. Esse fato não a diminui —apenas aponto um problema real sobre o qual aqueles que buscam heroínas se calam.

Grandes cantoras existem há muito tempo na música brasileira. Há menos compositoras, mas nomes como Rita Lee, Dolores Duran e Roberta Miranda fazem dela uma continuadora deste conjunto de exceção da música brasileira.

Mas contam-se nos dedos as instrumentistas em bandas dos grandes nomes da música popular brasileira. Não havia em sua banda nem sequer uma mulher instrumentista. Em seu DVD "Todos os Cantos", que rodou todas as capitais do Brasil, Marília não tinha mulheres no palco além dela mesma.

Outra questão, esta mais complexa, é o que vou chamar de "feminismo de patroa". A cantora vinha desenvolvendo desde 2020 com Maiara e Maraísa um disco e turnê intitulados "As Patroas". Neste projeto elas cantavam a retórica do feminismo e defendiam a ideia de serem elas mesmas mulheres empoderadas. Só que, e aí está uma contradição bem brasileira, a empoderada torna-se a mulher "patroa", a que está no mando, aquela que é hierarquicamente superior.

Se há "patroa", deve haver empregados, ou subordinados. No clipe de "Esqueça-me Se For Capaz", dirigido por Belle de Mello, o trio é mostrado como heroínas que "empoderam" mulheres, libertando-as de condições como "falta de igualdade de salários, relacionamentos abusivos e relações machistas no trabalho". As patroas do clipe são as três cantoras, as vanguardistas de punho cerrado, a libertar mulheres da opressão.

Voltamos ao velho dilema do vanguardismo político, que tanto fomentou debates nas esquerdas da época da ditadura. Naquela época, as esquerdas revolucionárias achavam que, conhecedoras dos dilemas nacionais, iriam libertar o povo da "alienação" política. A sociedade, no entanto, estava em outras sintonias, e não se coadunou aos interesses revolucionários.

Grande parte das experiências revolucionárias do século 20 redundou em governos ditatoriais autoritários. Talvez o povo não tenha embarcado nas experiências revolucionárias porque percebia que o vanguardismo continha em si algo de autoritário: aquele que é libertado continua tutelado, pois não libertou-se a si mesmo.

A política identitária de esquerda, na qual se insere o feminismo atual no Brasil, em geral se vê muito distante da esquerda tradicional, até porque surgiu historicamente disputando o espaço com esta. Cunharam até um termo para combater o estereótipo do militante de antigamente: o esquerdomacho.

Seja como for, os dilemas progressistas continuam não muito diferentes. O vanguardismo identitário recupera aquilo que algumas de nossas esquerdas tradicionais tinham de pior: a ideia de que uns (ou umas) são "conscientes" e outros (ou outras) estão "alienadas". Uns são ativos e outros passivos a serem libertados. A esfera pública é reconstruída não de forma horizontal, mas vertical. Nada mais esquerda tradicional.

Chamar alguém de "patroa" é bastante comum em todo o Brasil. Usado como valorizador por mulheres de todas as estirpes, é um termo apenas aparentemente sem conotação política. Trata-se de uma palavra também típica das relações senhoriais desde há muito descritas por Gilberto Freyre em "Casa-Grande & Senzala" e que remontam aos nossos dramas coloniais mais íntimos.

A senhora da casa-grande é a patroa, a dona, a que manda. É aquela que é mandada pelo marido e pela sociedade machista, mas reproduz tal assimetria nas relações de poder com seus subordinados, mulheres e homens escravizados. Será que o termo "patroa" é o melhor a ser usado por quem busca a libertação?

Ser "patroa" no Brasil é de fato não querer o fim das desigualdades. Talvez por isso o termo seja tão usado no meio sertanejo, no qual as hierarquias sociais são valorizadas.

É preciso alguma ponderação no raciocínio que transforma Marília em feminista. Afinal, o "feminismo de patroa" da artista era ambíguo —ela era parte, ao mesmo tempo, do Brasil rural tradicionalista e da liberação dos costumes. Trata-se de um paradoxo que funde os miolos de qualquer ativismo, seja de direita ou de esquerda, pois mostra que a cantora era complexa.

É preciso aprofundar o debate sobre o feminismo na intérprete goiana de forma séria para além de idealizações. Espero que, para além de julgar artistas, possamos desfrutar a esfera pública sem condenados ou réus, mas através do livre exercício do pensar. Marília, a ser humano Marília, não merece nada menos que isso.​

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