Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu festa junina

Luiz Gonzaga forjou o forró sem lugar de fala, unindo o Nordeste e o Sudeste

Antes um gênero malvisto, artista de Exu trouxe sonoridade voltada para o grande público radiofônico de sua época

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O forró, quase sempre tão associado ao Nordeste, tem raízes também no Sudeste. Foi Luiz Gonzaga, um pernambucano, quem forjou o gênero e criou o trio sanfona-triângulo-zabumba. Mas ele o fez enquanto morava no Rio de Janeiro. E foi através da mídia sudestina que o forró se tornou, paradoxalmente, nacionalmente reconhecido como nordestino.

O forró do início do século, antes de Luiz Gonzaga, era bem diferente. Aliás, nem era chamado de forró. O acordeonista Sivuca contou no documentário "Viva São João", de Ricardo Waddington, de 2002, que "forró" era quase um palavrão.

O cantor e compositor Luiz Gonzaga, durante show em 1984 - Folhapress

"O primeiro baile que eu toquei como sanfoneiro foi exatamente numa festa de São João num lugarejo na Paraíba chamado Fava de Cheiro, numa fazenda, em 1940", conta ele. "Se o tocador dissesse que estava tocando num forró ele era posto para fora de casa a socos e pontapés, porque era uma palavra obscena naquele tempo. Até samba podia chamar, mas era meio pejorativo, [era melhor] baile. Mas forró ou torrado [eram obscenos]... Torrado então era terrível!"

Antes da moda do baião criada por Gonzaga a partir de 1946, cada região do Nordeste tocava um tipo diferente de forró e não havia padronização de instrumentos. O pandeiro, um instrumento hoje associado ao samba, era muitas vezes tocado como acompanhamento.

No lugar da hoje onipresente zabumba, em algumas regiões era usado o melê, instrumento artesanal composto de um aro de madeira e uma câmara de pneu esticada como pele. E cada microrregião nordestina tinha seus instrumentos específicos.

Gonzaga migrou para o Sudeste depois de servir por muitos anos como soldado no Exército brasileiro. Quando deixou o sertão pernambucano, em 1930, abandonou a sanfoninha de oito baixos usada nos interiores nordestinos.

Corneteiro no Exército, o músico só voltou a se aproximar da sanfona anos mais tarde. Ao comprar um acordeom de 120 baixos, tipo de fole mais completo que uma sanfona de oito baixos, passou a tocar o repertório do novo instrumento —valsas, tangos, mazurcas e choros.

Teve um professor chamado Domingos Ambrósio em São João Del-Rei, onde serviu como militar, que lhe passou técnicas e repertórios adiantados do novo instrumento. O forró não fazia parte de suas intenções.

O acordeom era um instrumento visto como urbano e requintado, e não fazia sentido tocar um gênero humilde como o baião em um equipamento tão nobre. Levaria alguns anos para Gonzaga fazer a transposição, tanto instrumental, quanto mental.

Aí veio a primeira invenção sudestina do forró. O acordeom de 120 baixos substituiu a sanfona de oito baixos, instrumento que ao longo dos anos foi infelizmente desaparecendo dos forrós.

Quando finalmente conseguiu gravar na RCA em meados dos anos 1940, Luiz Gonzaga não tinha a seu lado nem zabumbeiro, nem triangulista. Como já mostrou o pesquisador Climério Santos no ótimo livro "Forró: A Codificação de Luiz Gonzaga", a gravação de "Asa Branca" de 1947 tinha como instrumental a voz de Gonzaga, sua sanfona e um violão, este último fazendo sons quase percussivos.

Até meados dos anos 1950 Gonzagão gravava suas músicas com o Regional do Canhoto, ao lado de feras como o cavaquinista Canhoto, Dino Sete Cordas (no violão que lhe deu o apelido), Meira (com o violão de seis cordas) e Altamiro Carrilho (na flauta), entre outros.

Os regionais eram formações de instrumentistas que acompanhavam artistas do samba e do choro, muito comuns na capital fluminense. Assim, grande parte dos sucessos gonzaguianos entre 1945 e 1955 têm como base musical cavaquinho, flauta, violão de sete cordas, pandeiro e bandolim.

Aos poucos Gonzagão foi forjando uma sonoridade específica mais conveniente para a empreitada estética que estava capitaneando. Era preciso soar bem nas rádios AM daquela época, e Gonzaga conseguiu isso ao inventar o trio sanfona-triângulo-zabumba. Desde o começo o forró surgiu comercial, preocupado com uma sonoridade voltada para o grande público massivo radiofônico de sua época.

Gonzaga morou no Rio de Janeiro do final dos anos 1930 até 1980, quando voltou para Exu, sua terra natal em Pernambuco. Morreu em 1989. Ele passou mais tempo de vida no Sudeste do que no Nordeste.

Considerando tudo isso, é válido afirmar que o forró foi forjado no Sudeste. Claro, por um nordestino. Mas que dificilmente conseguiria padronizar o forró se não fosse através dos contatos, idealizações e reelaborações feitas na indústria cultural sudestina.

Se fosse apenas nordestino, sem passagem pela mídia do Sudeste, o forró provavelmente seria apenas mais um gênero folclórico de pouca expressão, difuso e sem qualquer repercussão nacional.

Uma narrativa que inclua a ideia de forró sudestino na história do forró é, além de mais factualmente correta, mais desejável. O forró sudestino ilustra a síntese de raças, de regiões, de sotaques nacionais. Da mistura do forró nordestino e sudestino aparece um Brasil que, apesar dos preconceitos regionais, foi capaz de aceitar o diferente. O forró não tem "lugar de fala". Ele é de todos nós.

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