Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Fifa adota lógica do 'rouba, mas faz', louvada na política brasileira

É curioso que corrupção, expansão e democratização do esporte possam ser colocados numa mesma frase

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Terminada a Copa, é possível fazermos um balanço realista do evento. A Copa do Catar foi, apesar dos pesares (e são muitos), um campeonato excelente, divertido e surpreendente. Terminou com uma final dos sonhos, angustiante até o último minuto. Não parecia que seria assim.

A Copa começou com a Fifa nas cordas no imaginário mundial. As equipes inglesa e alemã protestaram contra a falta de liberdade de opinião em vários jogos e os iranianos usaram o evento para reclamar acerca da opressão vivida pelas mulheres em seu país.

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O atacante Neymar é consolado por Raphinha após a seleção brasileira ser eliminada da Copa do Mundo do Qatar - Gabriela Biló/ Folhapress

Mas por que um país como o Catar, notório pelo desrespeito aos direitos humanos e temperatura média de 41°C entre os meses de junho e julho, época em que a Copa do Mundo é tradicionalmente realizada, foi o escolhido?

Um documentário bombástico da Netflix, "Esquemas da Fifa", explanou todos os males da federação. Em 2010, a Inglaterra era a mais cotada para receber a Copa de 2018, e os Estados Unidos eram os favoritos para sediar o torneio de 2022: ambos foram superados por Rússia e Catar. O documentário não deixa dúvidas: corrupção generalizada e compra de votos das pequenas federações de países do terceiro mundo foi fundamental para as escolhas.

A Fifa deixou de ser uma instituição semiamadora de dirigentes europeus a partir da presidência de João Havelange, que durou entre 1974 e 1998. Através de uma agressiva política de descentralização do mando dos tradicionais dirigentes europeus, Havelange expandiu o futebol transformando-o num grande produto global. Tudo banhado, claro, por muita corrupção, mesmo que isso custasse arranhar a imagem do esporte, como aconteceu quando a Fifa fechou os olhos para os horrores da ditadura argentina em 1978, então sede do mundial. O suíço Joseph Blatter, sucessor político de Havelange na Fifa, que comandou até 2016, levou adiante a empreitada.

O evento de 2022 foi a primeira Copa num país árabe, algo que só pôde acontecer pois a Fifa levou o futebol para além da Europa e América do Sul. Catar e Rússia, países ricos em petróleo e gás natural, pareciam dispostos a entrar no esquema corrupto da federação. É curioso que corrupção, expansão e democratização do esporte possam ser colocados numa mesma frase, mas foi isso que aconteceu. Para nós brasileiros, não se trata de algo tão insólito assim.

A democracia brasileira de 1988 para cá foi fundada na corrupção estrutural, de todos os partidos, de todos os governos: do superfaturamento das cascatas da Casa da Dinda, de Fernando Collor, passando pela compra de votos na reeleição de FHC ao mensalão e petrolão petista.

Todo esse mar de lama foi conjugado à contenção da inflação, à expansão da saúde e educação públicas, ao crédito para pobres e às bolsas para conter a miséria. Vivemos numa democracia corrupta que, apesar dos pesares, incluiu na pauta política boa parte da sociedade brasileira, ainda que insuficientemente. Não que essa simbiose deva ser fruto de orgulho. Mas não nos espanta.

A Fifa ampliou as vozes dentro do futebol, que cresce ainda mais em popularidade no século 21. Tudo isso foi idealizado pela dupla Havelange-Blatter, num projeto de ampliação de votantes, conjugado à corrupta centralização das decisões. Na lógica do "rouba, mas faz" da política brasileira, eles seriam louvados.

O Brasil aparece no documentário com um depoimento de Ricardo Teixeira, genro de Havelange e dirigente que mais tempo ocupou a cadeira de presidente da CBF, de 1989 a 2012. Ele contou como votou a favor do Qatar para sede do mundial deste ano: "O Emir do Qatar veio ao Brasil. Ficou algum tempo, visitou o presidente Lula, que também achava uma boa solução o Qatar. Nós tivemos um almoço no Rio de Janeiro. Estavam lá eu, o Emir do Qatar, João Havelange. Estavam ali umas oito ou nove pessoas. Ali nós fechamos que nós íamos apoiar o Qatar", disse Teixeira. "Há troca de favores em qualquer setor da vida. Mas propina para fazer alguma coisa nunca recebi."

Acredita quem quer.

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