Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu Rita Lee

Rita Lee: a literata

Sua primeira autobiografia, de 2016, é excelente e sincera; dia 22 teremos outra

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A morte da grande Rita Lee, depois das idas de Erasmo Carlos e Gal Costa, deixa claro que a gloriosa MPB está ficando velhinha e seus mais gloriosos integrantes se despedindo. A idade tende a levar a uma reflexão sobre a vida vivida. No entanto, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, no Brasil não é tão frequente que artistas escrevam suas próprias memórias. Grandes nomes da música, como Chico Buarque, Djavan, Zezé Di Camargo, Milton Nascimento e Roberto Carlos, entre muitos outros, nunca escreveram livros de memórias. Rita escreveu e o fez de forma excepcional, como poucos.

Rita produziu dois livros de memórias. O primeiro, "Rita Lee: uma autobiografia", publicado em 2016, é excelente. Bem escrito, sem autopiedade nem consigo nem com os outros, é um livro sincero, que termina com gostinho de quero mais. Rita conseguiu contar períodos desconhecidos de sua vida íntima, como o estupro que sofreu na infância, sem cair na autocomiseração, e fez balanço complexo das implicações desse fato em sua vida pessoal e familiar.

Aliás, a descrição das grandezas e pequenezas familiares são a "cereja do bolo" desse livro. Todos familiares são retratados com respeito, mas sem indulgência. Não há medo de se expor. A grande artista sabia que toda forma de autoexposição pode ser feita de forma rica, complexa em seu conteúdo e análise e direta na sua descrição.

Algo muito diferente aconteceu em outras autobiografias não tão competentes. Um caso de livro de memórias claramente insatisfatório foi o escrito pelo grande Erasmo Carlos, em 2009, intitulado "Minha Fama de Mau". Chapa branca, a biografia passa pano para polêmicas, despreza implicações de acontecimentos paradigmáticos da trajetória de Erasmo e não adentra momentos íntimos e complexos de sua vida pessoal. Uma pena que Erasmo não tenha tido a sapiência de Rita para escrever com leveza (e complexidade) sobre acontecimentos pessoais tão marcantes, como o suicídio de sua mulher nos anos 90. Como Erasmo, que passou a vida compondo sobre o amor, foi afetado por esse episódio? A depender de "Minha Fama de Mau", quase nada sabemos.

Algo semelhante aconteceu na autobiografia de Gilberto Gil —escrita em parceria com a jornalista Regina Zappa em 2013. Intitulada "Gilberto de Perto", a autobiografia engana o leitor ao apresentar um artista tão distante quanto simploriamente retratado.

Em 22 de maio próximo será lançado "Rita Lee: outra biografia", data programada antes da morte da artista. Pelo que já se conhece do conteúdo, Rita manterá o tom irônico, debochado e sem autoindulgência, mas sempre reflexivo e autocrítico. Promete ser um livro a balançar meu ranking pessoal de autobiografias musicais.

Indiscutivelmente, a meu ver, "Verdade Tropical", publicada por Caetano Veloso em 1997, é a primeira colocada. Com um texto ao mesmo tempo introspectivo e extrovertido, Caetano conseguiu mostrar-se tão competente como literato quanto o músico que é. Com uma prosa fluida, mas sem simplismos, dá-nos uma visão íntima de sua vida até 1972, quando voltou do exílio e concluiu a narrativa. Aguardamos a "parte 2" de suas memórias, uma que se ocupe da carreira do baiano do momento que voltou do exílio até os dias de hoje.

Em segundo lugar está o livro de Rita lançado em 2016, uma obra invejável.

Em terceiro lugar coloco "Minhas Duas Estrelas", do cantor Pery Ribeiro, cantor de destaque da bossa nova. Nesse livro sensacional, Pery conta suas memórias de filho dos cantores Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Seus pais viveram intensamente o amor no início da era do rádio e separaram-se com muitas rusgas. O desquite virou pauta pública quando ambos cantaram diversas canções caluniando-se.

Tudo isso fez a infância do menino Pery ser um misto de admiração pelos pais e de ódio pela situação de constantes conflitos em que viviam. Pery soube ser reflexivo, generoso e ao mesmo tempo justo com seus leitores ao explanar sobre sentimentos e percepções que talvez só coubessem num divã. Apesar de tudo, Pery não renegou a música e tornou-se famoso por ser o primeiro a gravar "Garota de Ipanema", em 1963. Sua autobiografia é um livraço.

O fato de alguém ser um grande artista não necessariamente o torna capaz de produzir uma grande autobiografia. Para isso é preciso intimidade com a palavra escrita e introspecção para refletir criticamente sobre a própria vida. E, sobretudo, é preciso não se autocensurar.

Rita, essa grande artista, conseguiu ser magnânima até no apagar das luzes. Fará falta tanto para os amantes de suas músicas quanto de seus livros.

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