Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu LGBTQIA+

Drags e queernejo arquitetam a utopia possível da verdadeira democracia

Após feminejo, música sertaneja volta a abrir espaço para discussões de gênero

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Gabeu, filho do cantor Solimões (dupla com Rionegro) e criador do

Gabeu, um/uma dos/das grandes representantes do estilo queernejo Divulgação

O que a cultura drag tem a ver com a música sertaneja?

A princípio nada. Historicamente, a música sertaneja forjou e reproduziu muitos dos valores machistas de nossa sociedade.

Oriunda do campo, onde as relações de gênero são representadas tradicionalmente de forma mais estável e determinista, a música sertaneja em nada se parece a priori com a cultura urbana do mundo das drags, no qual as fronteiras entre gêneros são volúveis por excelência. Mais eis que um novo programa resolveu misturar ambos.

Estreou na semana passada o reality show "Caravana das Drags", no streaming da Amazon Prime. Trata-se de um programa apresentado por Ikaro Kadoshi e Xuxa Meneghel que acompanha dez drag queens em uma competição. As artistas drags viajam pelo Brasil em um ônibus espalhafatosamente decorado em busca do prêmio de R$ 150 mil e do título de Drag Suprema.

O reality é dirigido por Bettina Hanna e foi criado por Tatiana Issa e Guto Barra. Com oito episódios de 45 minutos, a série surgiu inspirada no "RuPaul´s Drag Race", reality que desde 2009 povoa o cenário da cultura drag mundial e também pode ser assistido na Amazon Prime. A versão nacional traz vários convidados que atuam como jurados, como Ingrid Guimarães, Juliette Freire, Gretchen, Lázaro Ramos, Rita Von Hunty, Matheus Carrilho, entre outros.

No primeiro episódio da série, que se passa no Rio de Janeiro, as drags jogaram futebol. No segundo, uma nova surpresa. Em Goiânia, a competição entre as drags envolvia cantar uma música do queernejo, uma mescla da música sertaneja e estética queer.

Desde 2019, o queernejo vem desestabilizando algumas normatividades tão comuns na música sertaneja. Composto por artistas LGBTQIA+, o queernejo é uma facção da música sertaneja que vem subvertendo as tradições rurais e fundindo-as com o discurso identitário contrário à heteronormatividade e à monogamia.

Um dos principais nomes do queernejo é o cantor Gabeu, que em 2019 gravou o clipe "Amor Rural", no qual cantava a plenos pulmões: "Vamos assumir o nosso amor rural/ Sai desse armário e vem pro meu curral".

Mais recentemente Gabeu fez uma releitura de "Cowboy Fora da Lei", de Raul Seixas, cuja versão trouxe à tona um significado óbvio da canção, o do caubói gay, mas que ninguém ainda tinha ouvido.

Neste ano, Gabeu lançou "Lance Aberto", no qual relativiza a monogamia e vê favoravelmente a ideia de abrir a relação amorosa, sem abdicar do melodrama tão comum na música sertaneja: "Se o nosso lance era aberto/ Você esqueceu de me avisar/ Até toparia um lance aberto/ Mas eu fiquei, o quê?/ Que nem tolo, fazendo papel de bobo/ Sem desenrolar meus rolos".

Gabeu não está sozinho. O queernejo trouxe nomes como Alice Marcone, Gali Galó, Reddy Allor, Bemti, Mel & Kaleb, Sabrina Angel. São nomes que têm um público ainda diminuto se comparado aos principais nomes sertanejos. Mas é um respiro dentro de um gênero tão apegado a valores tradicionais.

Foi com essa seara que o reality "Caravana das Drags" decidiu dialogar. Trata-se de interessante ponte de contato que até bem pouco tempo atrás seria inviável.

As drag queens do reality show Caravana das Drags
As drag queens do reality Caravana das Drags - Divulgação

Num verdadeiro diálogo, ambos se transformam. A cultura drag se mostra simpática à música sertaneja, superando sua condição de gueto em troca da possibilidade de se aproximar do gosto estético das multidões.

Por sua vez, a música sertaneja também vem se transformando ao abrir espaço cada vez maior para discussões de gênero. O debate mais incrementado de gênero e sexualidade na música sertaneja começou com as mulheres que, num movimento chamado de "feminejo", desde 2015 vêm afrouxando um pouco as amarras machistas da música sertaneja, introduzindo temáticas não tão comuns e o dito "empoderamento" feminino.

Algumas com mais eficácia que outras, fazem parte dessa geração. Simone & Simaria, Maiara & Maraísa, Naiara Azevedo, Yasmin Santos, Paula Mattos e a mais conhecida delas, que morreu precocemente, Marília Mendonça.

Quando o diálogo entre diferentes acontece, é natural que atritos e incompatibilidades fiquem evidentes. O que se vê no programa não é uma mistura lá muito eficaz. Quase todas drags fazem algo mais parecido com rap do que com queernejo. Seja como for, a possibilidade de diálogo entre searas tão diversas ilustra bastante bem o quanto os valores estão mudando nos dois lados.

A possibilidade de diálogo é fundamental, ainda mais no período em que vivemos, de reconstrução democrática. Não existe democracia sem diálogo. E nesse aspecto as drags e o queernejo vêm ilustrando a utopia possível de uma verdadeira democracia.

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