Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Galvão Bueno e Marlene Mattos: o Brasil mestiço e o autoengano

Embranquecidos pelos reacionários, os dois foram apagados da história pelos progressistas

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Duas séries documentais do Globoplay tiveram boa repercussão nos últimos meses. "Olha o que Ele Fez" conta a vida pessoal e profissional de Galvão Bueno. "Xuxa, o Documentário" mostra a vida da maior artista infantil do país. Apesar dos méritos de ambas, as duas séries perderam a oportunidade de abordar a questão racial brasileira de forma complexa.

No Brasil das pautas identitárias, todos aqueles que não são brancos "puros" são chamados de "negros". Ou talvez indígenas, se forem atestados pela Funai como remanescentes de povos originários. Mas ninguém ousou dizer que Galvão Bueno e Marlene Mattos, a arquivilã de Xuxa em seu documentário, talvez sejam negros ou indígenas.

No Brasil identitário supostamente progressista só há espaço para negros e índios "autênticos", aqueles de origem pobre ou militantes aguerridos e com discurso na ponta da língua contra as desigualdades brasileiras. Claro, as desigualdades raciais brasileiras existem, são visíveis e precisam ser combatidas. Mas será que o caminho é apagar os negros e índios bem-sucedidos da negritude e da indianidade?

Alguns podem dizer que Galvão não é negro nem indígena. Eu também acho. Ele parece mais um de nossos milhões de mulatos, cafuzos e caboclos que, quando são mais claros, e sobretudo quando enriquecem, parecem, aos olhos de nosso colorismo relativista, brancos. O lado bom disso é que, na utopia racial brasileira, a cor não é impedimento total à ascensão social. O lado negativo é que nos cegamos para os não brancos que ascendem socialmente.

Galvão Bueno em entrevista para o documentário "Olha o que Ele Fez", do Globoplay
Galvão Bueno em entrevista para o documentário "Olha o que Ele Fez", do Globoplay - João Miguel Júnior/Globo

A mãe de Galvão Bueno, a atriz Mildred dos Santos, era sul-matogrossense. Não raro, interioranos brasileiros têm a cara do Brasil mestiço. Superando barreiras raciais, Galvão Bueno tornou-se extremamente bem-sucedido profissionalmente e chegou a ter contrato mensal com a TV Globo que ultrapassava a casa do milhão de reais. Frequenta até hoje o jet set internacional, fala línguas do primeiro mundo, é fluente entre ricos e poderosos, consome todos os luxos que o dinheiro pode trazer.

Suprassumo de todo o high society que frequenta, o narrador apresentou aos brasileiros o circo elitista da Fórmula 1. Íntimo dos milionários do planeta, Galvão Bueno possuiu propriedade em Mônaco por longos anos. Seu apartamento hoje pertence a ninguém menos que o piloto bicampeão Max Verstappen.

No Brasil das pautas identitárias só há negros e brancos. Os miscigenados são invisibilizados através de um estranho conluio entre reacionários e progressistas. Os reacionários brasileiros embranquecem os miscigenados ao fingir não ver a ascensão de mulatos, cafuzos e caboclos em nossa sociedade. Por sua vez, os progressistas negam a esses mestiços brasileiros o status de negros ou indígenas.

Fica assim bloqueado o espaço ao miscigenado, hoje proscrito como a própria palavra mulato já o foi do vocabulário atual. E no entanto aceitar a miscigenação nunca foi tão necessário, como lembrou recentemente Antonio Risério em seu mais recente livro, "Mestiçagem, Identidade e Liberdade", publicado neste ano: "Que alguém hoje se veja obrigado a repetir, em alto e bom som, que o Brasil é um país mestiço é a prova mais ostensiva e escandalosa do quanto andamos alienados com relação a nós mesmos".

Uma amostra indubitável da mestiçagem bem brasileira é a outrora poderosa Marlene Mattos, transformada em algoz por Xuxa em sua série documental. Dirigido por Pedro Bial, o documentário é uma espécie de biografia oficial da apresentadora.

Xuxa e Marlene Mattos, sua ex-empresária, no quarto episódio de 'Xuxa, O Documentário', do Globoplay - Blad Meneghel

No documentário chapa-branca, desculpem-me o trocadilho, a mestiça Marlene é denunciada por várias atrocidades causadas à loira. Xuxa acusa a ex-empresária de encarcerá-la em quartos de hotel, de separá-la de namorados famosos, de boicotar a carreira da apresentadora nos Estados Unidos, de obrigar as paquitas a serem loiras e até, supremo sacrilégio, de criticar seu fino cabelo.

Claro, Marlene nunca foi santa. Mas daí a ser acusada de todos os recalques da rainha dos baixinhos vai um grande passo. É importante que se diga: Xuxa era uma mulher branca, rica, loira e famosa. Tinha a faca e o queijo na mão para fazer o que quisesse e quando quisesse. Demorou muito para romper com a empresária. Mas não pode se eximir dessa relação.

A rainha dos baixinhos parece ter uma forma infantil de ver o mundo. Ela enxerga as relações pessoais como encontros cor-de-rosa. E todos aqueles que não contribuem para essa comunhão são vilões. Acredita quem quer.

Infelizmente Bial decidiu não abordar este interessante caso de tensão racial no documentário. Marlene nasceu em 1950, em São Luís, numa época em que sequer havia televisão em sua terra. Miscigenada, tem a cara da sua gente maranhense. Lésbica declarada, tornou-se figura central no mainstream da emissora carioca numa época em que os testes de sofá e o machismo branco institucionalizado eram regras na Globo.

Para além das teorias identitárias em voga atualmente, a relação entre Xuxa e Marlene ilustra o curioso caso de uma miscigenada índia e negra dominando uma loira de olhos azuis. Foge ao script estruturalista de nossa sociedade e frita os miolos de muitos identitários raciais. Sem bula para lidar com a situação, muitos preferem o silêncio. Por sua vez, Xuxa tenta capitalizar no papel da vítima buscando a empatia e compaixão identitária. No fim das contas a "negra", se assim quiserem, segue mais uma vez no papel de vilã. E o documentário finge que essa questão racial não existe, afinal é mais fácil culpar Marlene do que envolver a Globo nesta conta.

Galvão Bueno e Marlene Mattos: dois mestiços brasileiros, embranquecidos pelos reacionários, apagados da história pelos progressistas. O Brasil, em nossa pobre dicotomia política e cultural, continua sem se enxergar.

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