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Como série tenta vender Xuxa, ex-símbolo sexual, como ícone feminista

Documentário constrói altar para reverenciar e humanizar apresentadora, mas não discute o sucesso do Xou da Xuxa

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Quem é, afinal, Xuxa Meneghel? Qual o seu significado para a formatação de toda uma geração de adultos, de quem foi babá eletrônica nas décadas de 1980 e 1990? E para a cultura brasileira em geral, qual a sua relevância verdadeira e seu impacto real?

A série "Xuxa, o Documentário", que teve seu quinto e último episódio liberado na Globoplay na tarde desta quinta-feira (10), chega ao fim respondendo apenas parcialmente a essas perguntas.

Xuxa Meneghel em cena de 'Xuxa, O Documentário', série documental da Globoplay - Blad Meneghel/Divulgação

Com direção-geral de Pedro Bial, a produção, enorme êxito de público e repercussão, se mostrou muito mais interessada em descrever episódios da vida e da carreira da apresentadora, de modo a desvelar sua essência enquanto pessoa, do que se lançar em voos de natureza mais sociológica, que talvez fossem ainda mais interessantes do que meramente trazer mexericos sobre a rainha dos baixinhos.

O documentário até se arrisca a bancar uma narrativa, de fato coerente: a Xuxa de hoje, aos 60 anos, é uma mulher muito distinta da loira sexy tida como tolinha, infantilizada e manipulável da década de 1980.

Com os anos, ela teria deixado de ser uma mulher poderosa mas "antiempoderante" para se tornar um ícone feminista dos anos 2020. Ou, na pior das hipóteses, uma mulher plena e, apesar dos abusos ao longo da vida, bem resolvida consigo mesma.

A atração, no entanto, praticamente não oferece uma reflexão mais acabada sobre a complexidade do fenômeno Xuxa. Tem uma óbvia propensão a reverenciá-la, por vezes quase erguendo para ela um altar.

Mas é uma série que, em seus melhores instantes, busca justamente humanizar a mítica figura daquela que por anos foi a mulher mais idolatrada e inatingível do Brasil —o que pode estabelecer um elo entre a apresentadora e o grande público bem mais eficiente do que uma hagiografia poderia fazer.

Mostrar Xuxa falando de seus erros, dramas e frustrações acaba sendo mais positivo para a imagem da apresentadora do que se fosse um documentário 100% chapa branca, com aquele silêncio sobre temas indesejados que marcaram sua trajetória. Por aquela Xuxa, ninguém mais se interessa.

A Globoplay sabe que o público gosta de ver personalidades controversas realizando um mea-culpa, e já produziu documentários com Karol Conká e Valmir Salaro fazendo isso. Chegou a vez de Xuxa.

Vemos a apresentadora pedir perdão por ter maltratado crianças e dizer que errou ao escolher só paquitas loiras. Também se retrata com Marcelo Ribeiro, o menino de "Amor, Estranho Amor", cuja carreira de ator foi inviabilizada devido ao escândalo do filme. E quase se desculpa postumamente com Ayrton Senna por não ter investido mais no romance entre os dois.

(Seria bom, após a série, ela pedir desculpa a Adriane Galisteu, que namorava Senna na época em que, segundo Xuxa, os dois planejavam voltar a se ver.)

Quando reencontra Marlene Mattos, ela muda o tom. Mira sua artilharia na ex-empresária, com uma fúria acumulada ao longo de décadas. Solta uma rajada de acusações e mágoas diante das quais, para sua surpresa, a pragmática Marlene segue impávida.

Ainda que reconheça que era submissa a ela por escolha própria, Xuxa coloca na conta do que seria um relacionamento abusivo com Marlene praticamente todos aqueles erros que, em outros trechos da série, ela já havia matado no peito. No reencontro, contudo, dá a entender que considera a ex-parceira a real responsável por tudo de errado que ela própria fez na vida.

Talvez o documentário sugira que os abusos sexuais na infância tenham levado a apresentadora a esse comportamento submisso à empresária, mas se for isso mesmo, o faz com a devida parcimônia, indiretamente.

Como esperado, o reencontro é o ponto alto de toda a série. Não só pela lavação de roupa suja, mas por revelar detalhes sobre como essas duas brilhantes profissionais têm e tinham modos distintos de pensar e agir —uma diferença que era também uma complementariedade, que garantiu o sucesso da dupla.

É curioso perceber, ali, o quanto Xuxa refinou seu discurso e sua consciência sobre si e suas atitudes com os anos. Soube se atualizar, captou o espírito do tempo de 2023 e adotou um discurso antenado com a sensibilidade moderna. E agora usa-o como régua para julgar as atitudes de Marlene que hoje soam inaceitáveis.

Independente do quanto ela tem ou não razão em suas queixas, esse comportamento despreza algo que a própria Xuxa diz no primeiro episódio. "O Brasil era bem diferente. Tipo um outro mundo."

Julgar esse "outro mundo" pelas regras do atual, muitas vezes, é injusto. Ou Xuxa acha que, se não fossem os anos 1980, em toda sua desmesura e bizarrice, ela teria se tornado o fenômeno que se tornou?

Aliás, o documentário abre justamente com a própria apresentador dizendo: "Eu cheguei no momento certo, com a imagem certa". Uma figura como a dela só ganharia a amplitude que ganhou especificamente ali, e enquadrada no esquema mutualista de Xuxa e Marlene.

No mais, falta à série uma discussão sobre uma das grandes acusações feitas a Xuxa desde sempre: o de estimular as crianças ao consumo desenfreado. A apresentadora já foi indagada sobre isso ao longo dos anos, mas saía pela tangente —o problema não era ela, dizia, mas o Brasil não permitir às crianças condições de consumirem.

Ela tinha lá um ponto, mas não levava em conta a violência simbólica que era ela surgir diariamente na TV, majestosa, vendendo uma imagem e uma série de produtos a uma maioria esmagadora de baixinhos a quem nada daquilo era possível obter.

A série também ignora a questão sobre se Xuxa, com seu visual, teria sexualizado as meninas brasileiras precocemente. Mas marca um golaço ao discutir a questão da violência sexual, sobretudo em uma conversa entre a biografada e Luiza Brunet. É outro grande momento do documentário.

Os trechos recuperados do começo como manequim e dos tempos com Pelé são especialmente um achado —assim como as cenas de encontros da artista com Junno nos tempos do "Xou da Xuxa".

O maior êxito da série, porém, é conseguir mergulhar o espectador nos períodos da vida de Xuxa que revisitou, surfando com sabedoria na atual onda de saudosismo pela década de 1980.

Talvez por ter sido uma época tão inacreditavelmente trash, frívola e irresponsável, tão diferente do olhar politicamente correto do mundo atual. E que, exatamente por isso, nos pareça tão fascinante —ainda que ver a Xuxa de hoje, madura e sábia, também tenha seu fascínio.

Xuxa, o Documentário

  • Quando Disponível no Globoplay
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção Cassia Dian e Monica Almeida
  • Direção-geral Pedro Bial
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