Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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'Vale o Escrito', fantástica série do Globoplay, é marco do audiovisual

Seus defeitos estão mais no quesito 'gostaríamos de saber mais'

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Estreou na semana passada no Globoplay a série "Vale o Escrito: a guerra do jogo do bicho". Trata-se de um documentário dirigido pelos experientes Fellipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti. Integrantes do núcleo de documentário do Globoplay, supervisionado por Pedro Bial, os três diretores têm alguns filmes de boa repercussão no currículo. Mas dificilmente qualquer documentário anterior superará esta ótima série sobre a centenária prática do jogo do bicho e sua história bem brasileira.

Nascido em 1892 como uma ingênua forma de financiar o zoológico municipal, o jogo do bicho popularizou-se ao longo das décadas no Rio e no Brasil. De lá pra cá, sociólogos e historiadores pesquisaram a intensa relação do jogo com a sociedade brasileira. Sob a capa de ser um uma mera contravenção penal, não um crime grave, os bicheiros floresceram na paralegalidade.

A grande qualidade da série do Globoplay é, além de explicar as entranhas do jogo do bicho, avançar até os dramáticos dias atuais. "Vale o Escrito" mostra como a disputa entre bicheiros se estabilizou a partir de uma série de acordos forjados no fim dos anos 70. Os protagonistas desse momento histórico foram os bicheiros Capitão Guimarães, Anísio Abraão David, Castor de Andrade e Miro Garcia. A "pax" bicheira, intimamente celebrada nas relações espúrias com as escolas de samba do Carnaval carioca, durou cerca de 30 anos, até a morte de Maninho Garcia, filho de Miro e patrono da escola de samba Salgueiro, em 2004. Desde então o que se viu foi uma guerra fratricida que coloca em xeque a ordem da velha geração.

Crimes em avenidas centrais da cidade, corpos incinerados, ataques surpreendentes e tiroteios a céu aberto tornaram-se práticas corriqueiras. Especialmente de 2010 para cá, o fim da estabilidade da cúpula do jogo do bicho vem corroendo a imagem da cidade do Rio de Janeiro, já bastante debilitada por traficantes de drogas, polícia corrupta e milicianos.

Cena de 'Vale O Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho'
Cena de 'Vale O Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho' - Divulgação

"Vale o Escrito" é uma pérola do audiovisual brasileiro. A série do Globoplay surpreende porque conseguiu longas entrevistas com os protagonistas do mundo do bicho. Sem papas nas línguas, entre algumas escusas e diversionismos, há muitas entranhas do submundo carioca expostas de forma inédita. Há amor, tragédia, mortes bizarras, traições, reviravoltas mirabolantes, tramas freudianas, acusações diretas, tudo contado nos mínimos detalhes, sem perder o fio da meada nem desviar o interesse do espectador.

Se o roteiro é o calcanhar de aquiles do cinema nacional, esse pecado "Vale o Escrito" não comete. Consegue-se manejar soberbamente muitas séries dentro da série. Há a história do jogo do bicho. Há a relação da ditadura com a contravenção. Há a intensa simbiose dos bicheiros com o Carnaval a partir dos anos 70. Há a história das gêmeas bicheiras que brigam pelo legado do pai, Maninho Garcia, e acabam perdendo quase tudo. Há a ligação do escritório do crime com o jogo do bicho. Há a estranha proximidade da família Bolsonaro com personagens importantes da ilegalidade. Há ricas análises sobre a nova geração contraventora, filhos da máfia bicheira.

"Vale o Escrito" é um marco do audiovisual. Suas qualidades são tantas que seus defeitos estão mais no quesito "gostaríamos de saber mais". Merecíamos mais sobre a relação do tráfico de drogas com o jogo do bicho, tema pouquíssimo abordado na série.

Não importa. A série do Globoplay já é um dos marcos do audiovisual nacional sobre o tema da criminalidade no Rio. Está a altura de filmes clássicos como "O Homem da Capa Preta" (1986), "Notícias de uma Guerra Particular" (1999), "Cidade de Deus" (2002), "Tropa de Elite" (2007).

Quase sempre se diz que a realidade é muito mais complexa do que qualquer narrativa conseguiria dar conta. Pois agora o real encontrou em "Vale o Escrito" um narrador à altura.

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