Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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'Nordeste Já' e o resultado da influência da canção de pop 'We Are the World' no Brasil

Versão nacional fundou padrão de ação benevolente na grande mídia e vigora até hoje através do Criança Esperança na Globo

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Foi lançado mês passado na Netflix o filme "A Noite que Mudou o Pop". Trata-se de um documentário sobre o encontro de grandes artistas do pop dos EUA em 1985 para a gravação da famosa canção "We Are the World", composta por Lionel Richie e Michael Jackson.

Era para ser uma boa ação para ajudar os famintos da Guerra Civil da Etiópia, que aconteceu entre 1983 e 1985. O que poucos se lembram é que naquele mesmo ano de 1985 houve o "Nordeste Já", iniciativa de artistas da MPB para ajudar os flagelados nordestinos.

Artistas que participaram de campanha para arrecadar fundos para a região Nordeste do país - Jewy Moraes/Nordeste Já

Foi em maio de 1985 que o Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro, na época capitaneado por Aquiles Rique Reis —cantor do MPB-4—, se juntou à Caixa Econômica Federal para gravar, lançar e distribuir um compacto com duas canções para ajudar os flagelados nordestinos. O disco teve tiragem inicial de 500 mil exemplares, que foram vendidos até setembro daquele ano.

O dinheiro arrecadado com o disco seria utilizado para a construção de praças, quadras polivalentes, teatros e creches nas áreas do Projeto Verde Teto, iniciativa pública da Caixa Econômica então já existente.

Capitaneados por Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, a gravação reuniu boa parte dos artistas do samba, da MPB e do então nascente rock nacional.

De um lado do compacto foi gravada a canção "Chega de Mágoa". Apesar de creditada como "criação coletiva", era na verdade um reggae de Gil, um dos diretores musicais do projeto. A letra de "Chega de Mágoa" era de Chico, Gil, Caetano, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Fausto Nilo, Fernando Brant, Milton Nascimento e Fagner.

Do outro lado do compacto foi gravada "Seca d'Água", uma melodia de Fagner sobre letra de Patativa do Assaré.

Foram creditados na ficha técnica do disco quase 150 artistas. Estiveram presentes na gravação de Alceu Valença a Zizi Possi, de Alcione a Zé Ramalho, de João Nogueira a Golden Boys, de Raphael Rabello a Martinho da Vila, do MPB-4 a Kid Abelha.

É difícil dizer quem faltou, mas olhando bem a lista, vê-se a exclusão ou esquecimento de alguns artistas. Ao contrário do mestre Luiz Gonzaga e de nordestinos como Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Belchior, Dominguinhos foi esquecido. Apesar da presença de Elizeth Cardoso, cantores da velha guarda como Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto foram negligenciados.

Os sertanejos então em ascensão naquela década como Chitãozinho e Xororó, Milionário e José Rico e João Mineiro e Marciano tampouco foram lembrados. Cantores bregas como Amado Batista, Ovelha, Wando e José Augusto foram esquecidos.

Quase todos artistas da MPB foram lembrados, mas alguns não puderam estar presentes. Tom Jobim, com problemas dentários, apareceu mais tarde no estúdio para tocar piano, e ironizou a canção de Gil. "É preciso prestigiar o reggae", disse o maestro soberano, que não foi clicado para a foto coletiva.

Jorge Ben, contumaz ausente de confraternizações, explicou estar em turnê. Apesar da ausência no disco, Ney Matogrosso cantou a canção no programa "Chico & Caetano", especial da TV Globo daquele ano, ao lado dos anfitriões e do roqueiro Paulo Ricardo.

Por sua vez, Milton Nascimento, que mandou sua participação por correio, quase foi excluído. Havia na época uma greve dos funcionários da estatal e por pouco sua participação não chegou a tempo.

Assim como mostra o documentário sobre o "We Are the World", as gravações do compacto "Nordeste já" vararam madrugada adentro. E também houve a gravação de um clipe coletivo, que foi lançado no Fantástico, da TV Globo. Mas, diferentemente da inspiração americana, a versão brasileira não conseguiu unir os mais de uma centena de músicos num dia só, então alguns artistas gravaram em dias diferentes.

A comparação com a versão americana incomodava Chico Buarque, que disse ao Jornal do Brasil na época: "Não foi a gravação do ‘We Are the World’ que nos motivou, porque eles é que chuparam da gente. É tradicional nos juntarmos para shows".

Já a cantora Marina Lima não se intimidou em ser cópia dos americanos: "Estamos com o sentimento de dar as mãos e o movimento para a África mexeu com todo mundo. As pessoas estão menos individualistas".

Outro que também não gostou da forma como parte da mídia tratou o compacto "Nordeste Já" foi Caetano Veloso. Bem a seu estilo verborrágico, Caetano atirou para todos os lados. Em uma coluna no Jornal do Brasil afirmou que "Nordeste Já" era de fato a versão brasileira de "We Are the World", mas ao mesmo tempo disse que os americanos também eram uma cópia.

Afinal, a ideia de ajudar os famintos etíopes havia surgido no ano anterior na Inglaterra, quando roqueiros do quilate de Bono, Boy George, Sting e George Michael, capitaneados por Bob Geldof, criaram a Band Aid, e cantaram juntos a canção "Do They Know It's Christmas?", cujos fundos foram destinados a flagelados africanos.

A ira de Caetano sobrou até para Rita Lee, que disse na época do lançamento que a versão brasileira deveria se chamar "We Are the Worst", ou nós somos os piores, o que irritou o baiano.

"Não gosto deste humor, deste tipo de trocadilho ‘witty’ [espirituoso, espertinho, chistoso]. É um autodesrespeito. Não entendo. Quando seria preciso boa vontade de todo mundo, tivemos má vontade, vergonha, timidez", disse o baiano contra Rita Lee.

Em seguida Caetano mirou alguns críticos paulistas desta Folha. Contra Ruy Castro, Caetano defendeu "Chega de Mágoa", que na sua opinião era melhor do que a versão inglesa.


Ruy Castro era um dos que ironizava o compacto nas páginas da Folha. Em 16 de maio, o jornal havia chamado o disco de "We Are the Nordeste". Em 16 de setembro daquele mesmo ano, Castro ironizou os artistas brasileiros ao dizer que "We Are the World" havia levado o prêmio de melhor clipe coletivo e que o clipe de "Chega de Mágoa" não tinha nem sequer sido cogitado.

Sobre a briga de Caetano com Rita Lee, Castro escreveu: "as únicas gracinhas de que Caetano tem achado graça são as que ele mesmo faz". Mas tudo acabou bem entre Rita e Caetano. O baiano pôs letra na canção "Nave Maria", que Rita gravou no disco daquele ano ao lado do marido Roberto de Carvalho.

Quem procurou capitalizar com o sucesso de "Nordeste Já", que dominou as paradas entre maio e julho de 1985, foi Roberto Carlos. Ele incluiu tanto "Chega de Mágoa" quanto "We Are the World" em seu show daquele ano no Maracanãzinho, o que incomodou o ranzinza Ruy Castro. O colunista ironizou Roberto ao dizer que ele estava querendo ser o "rei do mundo", ampliando seu reinado do Ceará à Etiópia, ao cantar "numa língua parecida com o inglês".

O objetivo do compacto "Nordeste Já" era arrecadar fundos para o Nordeste, mas também forjar alternativas fora da indústria fonográfica. Insatisfeitos com as grandes gravadoras da época, os artistas da música buscavam novos caminhos na então recente democratização.

Esperava-se que "Nordeste Já" abriria um filão para a música independente por meio da ajudinha estatal. Os LPs eram numerados e vendidos somente nas cerca de 2.000 agências da Caixa Econômica Federal, de forma a escapar às cadeias de produção e divulgação das tradicionais gravadoras e lojas de discos.

O lançamento contou com as bênçãos do presidente José Sarney, que recebeu os artistas em Brasília em 12 de junho e se mostrou especialmente tocado com a presença de Fafá de Belém, então conhecida como a "musa das Diretas Já", a quem beijou afavelmente no rosto.

Tempos depois, em maio de 1987, o novo diretor do sindicato, o músico Maurício Tapajós, informou que o dinheiro arrecadado foi usado em um centro comunitário em Oeiras, no Piauí, outro em Igarassu, em Pernambuco, e ainda outro em Janduís, no Rio Grande do Norte. Havia ainda centros planejados para os municípios de Várzea, também no Rio Grande do Norte; Ilhéus, na Bahia; Barras, no Piauí; Viçosa, em Alagoas; Carutapera, no Maranhão; Russas, no Ceará; e Catolé do Rocha, na Paraíba.

Também tocado pelo flagelo nordestino daquele ano, o humorista cearense Renato Aragão propôs à TV Globo a criação do programa SOS Nordeste, que teve duração de quatro horas e participação de vários artistas pedindo ajuda para as vítimas da seca. Em 1986, a Globo rebatizou a campanha de Criança Esperança e tornou-a anual.

"Nordeste Já" fundou um padrão de ação benevolente de mídia massiva que vigora até hoje.

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