Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Entre abortistas e antiabortistas, há meio-termo que seja possível?

Nas redes sociais, ganham curtidas aqueles que bradam radicalismos, mas um debate honesto envolve aceitar o outro

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Há algumas semanas aqui nesta Folha a jornalista Anna Virginia Balloussier se perguntou se é possível haver um debate honesto sobre aborto. Trata-se de um tema que, há pelo menos 15 anos, polariza o debate político nacional, como se dele dependesse o destino da nação.

Segundo Balloussier aponta corretamente, ainda prevalece em boa parte da esquerda, a ideia de que quem se contrapõe ao aborto padece de atraso civilizacional. Por outro lado, conservadores, religiosos e direitas mais intransigentes tratam a mulher que aborta como assassina.

Tal como várias questões do nosso tempo, o debate se mostra polarizado e ambos lados entendem o outro não como adversário político, através do qual se poderia chegar a um meio-termo, mas como inimigos, cujas visões de mundo precisam ser eliminadas.

Ato pela descriminalização e legalização do aborto na América Latina e Caribe, na Avenida Paulista - Bruno Santos/ Folhapress

No entanto, a discussão sobre aborto não é simples e, como diz a jornalista, "não há bala de prata para encerrar a querela. Há muitas hipóteses, mas não consenso científico, que dirá metafísico".

Se dependesse de mim, o aborto seria totalmente um desejo da mulher, como é nos países nórdicos. Mas, goste-se ou não, o Brasil não é a Suécia e os valores religiosos e morais têm grande peso político em largas camadas da população.

Instigado pela coluna de Balloussier, estimulei-me a pensar o que seria um debate honesto sobre o tema, e qual seria um encaminhamento possível para a questão. Para tal interlocução de ideias e argumentos acontecer é preciso, a meu ver, que ambos os lados legitimem a verdade do outro.

Considerar o argumento moral como não válido é recair no autoritarismo comum em muitos bem pensantes progressistas. O Estado é laico, dizem. Sim, mas as pessoas não são. E, para esses cidadãos, sua moral, religiosa ou não, deve ser levada em conta.

Por outro lado, não se pode dizer que os conservadores, religiosos e direitistas mais renhidos tenham ganhado a discussão. Se dependesse deles, o aborto seria completamente proibido no país. Mas não é o que acontece. O aborto já é permitido no Brasil em determinadas circunstâncias, como no caso de estupro ou feto anencéfalo. Logo, o argumento religioso supostamente pró-vida não prevalece por si só. Tal posição deve ser contemporizada com a realidade da mulher atual e com o nosso momento histórico.

Pensando assim, como poderíamos ampliar o caminho do meio já existente? Seria possível pensar numa saída conciliatória, que faça dialogar defensores do aborto e seus contrários? Nessas horas é bem-vinda a utopia. Ela dificilmente atenderá os interesses intransigentes dos polarizados, mas pode servir para alargar o que entendemos por aborto legal, sem com isso transgredir completamente valores morais largamente enraizados na sociedade. Segue então a minha utopia conciliatória, que quiçá poderá ser legalizada algum dia, ampliando o que entendemos por aborto.

Como sabemos, para haver uma criança, é preciso pai e mãe. Atualmente toda a responsabilidade sobre o aborto é colocado nos ombros da mãe, que carrega as pechas legal e moral sobre o tema. Seria desejável que implicássemos os homens nessa conta, de forma a superar o frequente machismo do debate.

Mas aí enfrentamos uma questão espinhosa, que é a desigualdade biológica dos seres. São mulheres que engravidam, não homens. Uma constatação óbvia, mas que dificulta lidar com o aborto pensando apenas no corpo da mulher.

Imaginemos um mundo em que as mulheres pudessem fazer o aborto legalmente, desde que fosse em desejo comum com seu parceiro. Não se assustem, progressistas! Estou propondo um alargamento do aborto legal. E colocando o ônus da questão no ombro de ambos, homem e mulher. Mas isso seria um regresso da pauta, dirão os abortistas. Afinal, minha proposta submeteria a mulher ao homem. A meu ver, não. Trata-se apenas de também responsabilizar o homem na prática abortista.

Mas como vamos atrás dos homens que, em nossa sociedade, somem por aí abandonando crianças? Ora, hoje em dia conseguimos fazer até pai que não paga pensão ir para a cadeia! Qual a dificuldade de chegarmos ao pai do feto? Bastaria que a mulher, para fazer aborto legal em hospital público, dissesse o nome do pai, de forma a tornar a prática legal. Ao judiciário, o mesmo que cobra pensões ausentes, caberia um prazo curto para encontrar o pai. Se o casal topasse o aborto, qualquer hospital público faria a prática sem maiores questionamentos.

E se homem não quisesse o aborto? Ora, então a mulher ficaria comprometida a entregar a criança ao pai para que ele a crie. Estamos acostumados a ver mães solo, mas quase nunca pais solo. Quem é "pró-vida", que assuma os custos, afetivos e financeiros, seja homem ou mulher.

Isso resolveria completamente a militância? Claro que não. É possível que ambos os lados fiquem insatisfeitos. Feministas se decepcionariam com a derrota da pauta "meu corpo, minhas regras". Religiosos e conservadores se decepcionariam por não conseguir valer sua noção intransigente de vida. Mas isso é fazer política. Se esta minha proposta utópica vigorasse, a noção de aborto possível no país seria alargada.

E haveria conservadores e religiosos a topar esse alargamento? Claro que há. Basta ver que uma figura da relevância do pastor Edir Macedo, o todo-poderoso da Igreja Universal, já deu várias declarações pró-aborto. Por que não montar uma frente pró-aborto que incorpore evangélicos?

Nossa polarização política tem um quê de fake news que contamos para nós mesmos. Talvez por isso nunca se viu uma feminista querendo conversa com Edir Macedo, e vice-versa. Nas redes sociais, ganham curtidas e coraçõezinhos aqueles que bradam radicalismos, sem nunca buscar pontes possíveis. Uma pena. Um debate honesto envolve aceitar o outro como parceiro da discussão.

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