Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gustavo Alonso
Descrição de chapéu Chuvas no Sul

O Brasil caramelo

Sem democracia racial, continuamos a nos ver como miscigenados através dos animais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em meio ao desespero das enchentes no Rio Grande do Sul, uma imagem marcou milhões de brasileiros tocados com a tragédia. Tratava-se de um cavalo marrom ilhado sob um frágil telhado de uma humilde casa em Canoas, na periferia de Porto Alegre. A imagem atualizou o simbolismo do cachorro caramelo que, há alguns anos, uniu a nação na defesa do hibridismo racial que entre humanos não é mais possível.

Após as chuvas devastadoras, o cavalo foi avistado pelo helicóptero da TV Globo e seguiu imóvel por três dias em cima do telhado. Devido à pelagem, ganhou o apelido de Caramelo e causou comoção nas redes sociais.

O resgate no dia 9 de maio foi transmitido ao vivo no programa de Ana Maria Braga. O animal teve que ser dopado para não causar acidentes aos bombeiros que o salvaram, que o batizaram de "Valente". Mas o nome que pegou mesmo foi o das redes sociais e o animal continuou sendo chamado pela cor.

O resgate de Caramelo foi assistido pela primeira-dama, entusiasta da causa animal. Janja utilizou as redes sociais para comemorar o resgate e gerou polêmica. Whindersson Nunes, um dos maiores nomes da internet brasileira, ironizou a primeira-dama por pegar carona na tragédia, que retrucou, dando ainda maior visibilidade à disputa simbólica pelo cavalo caramelo. O youtuber Felipe Neto e a atriz Giovanna Ewbank se prontificaram a adotar o bicho.

O animal já não era mais apenas gaúcho. Rapidamente, Caramelo foi se tornando um ícone de resiliência em meio à tragédia climática global. Seu simbolismo cruzou as fronteiras nacionais e tornou-se um emblema do aquecimento global.

No programa "Domingão com Huck" do dia 12, foi dito que a imagem de Caramelo no telhado substituiria a do urso polar ilhado num iceberg, já que as mudanças climáticas não mais estavam circunscritas ao distante polo Norte, mas batiam nossa porta.

Desde então o cavalo vem ganhando menções na imprensa. Caramelo chegou a diversas mídias do exterior. Notícias do salvamento foram publicadas nas páginas do New York Post, BBC, ABC, Al Jazeera, The Guardian, NBC, Le Figaro, Clarín entre outras mídias espalhadas pelo mundo.

Quase todos os meios de comunicação, brasileiros e internacionais, citaram o nome de batismo escolhido nas redes sociais, embora nenhum deles tenha analisado seu significado para além da pauta ambiental. O animal causou comoção pois, por dentro do simbolismo da causa animal e do clima, Caramelo é simbólico de nosso hibridismo racial.

Há alguns anos houve mobilização semelhante. Foi em 2020, quando o Banco Central decidiu que a Casa da Moeda imprimiria uma nova cédula, que uma campanha de grandes proporções tomou as redes sociais em pouco tempo. Através da ironia tão comum no país, os brasileiros defendiam que, em vez do lobo-guará, um humilde cachorro vira-lata caramelo fosse estampado na nova nota de R$ 200.

Os internautas se viam refletidos num cachorro de rua, sem raça definida, um híbrido de tamanho mediano, sem a beleza de um cão de raça com pedigree. Trata-se de uma autoimagem que diz muito sobre como nós brasileiros enxergamos as raças no Brasil e como ainda nos vemos como um povo miscigenado, a despeito das forças em contrário atuantes na pauta identitária hegemônica nos dias de hoje.

Fotografia colorida mostra marcha da consciência negra em São Paulo, em 2017. Manifestantes seguram faixa amarela em que se lê: "Miscigenação também é genocício".
Marcha da Consciência Negra na Avenida Paulista em 2017. - Joca Duarte/Photopress

Na última década vivemos a hegemonia de teorias identitárias acerca da nossa formação racial, contrária a ideia de miscigenação. Muito alimentada por movimentos negros com demandas justas, uma reinterpretação racial radicalizada do Brasil vem forjando mentes dentro e fora das universidades.

Grande parte dos identitários de hoje enxerga o Brasil como um país birracial, branco e negro, exploradores e explorados, sem matizes ou sutilezas. Nesse cenário simplista, a miscigenação é vista como um embranquecimento da sociedade, genocídio do povo negro.

Como não se pode mais falar de democracia racial nem como utopia nacional, sob o risco do cancelamento das redes sociais, projeta-se esta quimera para outros seres. Se não podemos mais nos reconhecer como miscigenados, deslizamos esta interpretação aos cães e, agora, também aos cavalos.

Assim, malandramente, continuamos a nos ver como misturados racialmente através dos animais. Os brasileiros parecem dar um drible naqueles que querem nos transformar numa sociedade birracial simplista, mera imitação dos EUA, que buscam apagar a longa tradição brasileira de encontro de raças.

No mundo dos animais ainda podemos ser orgulhosamente mestiços, caramelos. E, através deles, ainda conseguimos nos unir nacionalmente, superando as barreiras raciais, em busca de alguma redenção para um povo híbrido acometido pela tragédia. Que povo é capaz de viver sem utopia?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.