Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

Tropicália não matou Moïse e denunciou selvageria racista no Brasil

Crítica de que movimento capitaneado por Caetano e Gil tenha endossado desigualdade racial ignora suas canções

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Não há dia que não nos sejamos lembrados da selvageria nacional. Há pouco mais de duas semanas, no dia 24 de janeiro, um homem negro de origem congolesa foi espancado até a morte no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca. Moïse Mugenyi Kabagambe foi cobrar uma dívida trabalhista e acabou emboscado e assassinado por comparsas de seu patrão. Os assassinos foram presos, o dono do quiosque, localizado. Segundo o ministro Gilmar Mendes, que comentou sobre o ocorrido no Twitter, Kabagambe foi morto por uma máfia de milicianos. Esperemos que, desta vez, a justiça não seja parceira da selvageria.

Movimentos de luta por direitos humanos e contra o racismo, como a Coalizão Negra por Direitos e a Frente Povo Sem Medo, fazem ato pedindo justiça no caso de Moïse Mugenyi Kabagambe, assassinado no Rio de Janeiro; o ato ocorreu em frente ao Masp, na avenida Paulista - Mathilde Missioneiro/Folhapress

A notícia sobre o absurdo assassinato já é velha. Retomo o assunto pois, em meio à comoção provocada por essa morte brutal, um artigo publicado aqui na Folha por Dodô Azevedo transbordou o cruel assassinato para o campo musical. Usando a infeliz coincidência de que o quiosque palco do assassinato se chamava Tropicália, o autor acabou por procurar os algozes de Moïse no movimento cultural liderado por Caetano e Gil.

O texto, intitulado "Racismo, Selvageria e Tropicália", faz chacota com o legado da tropicália, movimento cultural capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil nos anos 1960 e cujas influências se esparramam pela música brasileira até hoje. A agressividade do autor acha que ser tropicalista é passar pano para a barbárie: "Essa guerra nunca será vencida com hashtags. E se houver a tal da justiça? Se forem presos e condenados todos os responsáveis? O que isso muda? Deixaremos de ser racistas e violentíssimos especialmente com imigrantes de pele preta? Quanto tempo irá demorar para voltarmos a cantar, felizes e orgulhosos, ‘viva a mata-ta-tá, viva a mulata-ta-ta-tá’ [trecho da canção ‘Tropicália’], cheios de esperança nesse país tropicalista, abençoado por Deus e bonito por natureza, como se nele nunca um jovem congolês tivesse sido espancado até a morte". Segundo o autor, vivemos numa "ficção chamada Brasil tropicalista".

Na conclusão do artigo, Dodô Azevedo dá seu veredito: "Qualquer país justo já estaria em chamas, revoltado com o crime. Se, na verdade, já não estivéssemos em chamas, só que fogo que apenas queima a carne de determinada cor e classe social. Éramos para estar em guerra civil. Mas, na verdade, já estamos, e Moïse Mugenyi Kabagambe é mais uma vítima. Era para o Exército do Congo ter invadido esse Brasil deboísta-miliciano. O que fez foi nos invadir com cultura. Séculos atrás, o Congo nos deu tudo, porque nos deu o samba. Nós retribuímos com tropicália".

Dodô Azevedo não está sozinho na crítica à tropicália. Desde seu advento, o movimento foi muito criticado, por direitas e esquerdas. E a tropicália sobreviveu a todos. Mas há algo de novo no ar. Até então as críticas de esquerda vinham muitas vezes com forte inspiração marxista. O que chama a atenção no texto de Dodô Azevedo é o viés identitário radical de suas críticas. Antes, os críticos apontavam a pouca adesão, por parte dos baianos, à pauta da luta de classes. Agora, Dodô Azevedo condena a tropicália por ser um tipo de música que supostamente endossaria o racismo no país.

Alguns fatos ilustram como as vidas de Caetano e Gil são de forte engajamento antirracista.

Em 1976, Gilberto Gil gravou no disco "Refavela" a canção "Ilê Ayê", em homenagem ao primeiro bloco afro do Brasil: "Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava um banho de piche, branco, e ficava preto também". Em 1979, ele lançou a canção "Sarará Miolo", repertório do disco "Realce": "Sara, sara, sara cura/ Dessa doença de branco/ De querer cabelo liso/ Já tendo cabelo louro/ Cabelo duro é preciso/ Que é para ser você, crioulo".

Em 1984, Gil foi convidado por Cacá Digues para fazer a trilha sonora do filme "Quilombo". A canção homônima exalta a africanidade, o candomblé e a luta pela liberdade: "Existiu/ Um eldorado negro no Brasil/ Existiu/ Como o clarão que o sol da liberdade produziu/ Refletiu/ A luz da divindade, o fogo santo de Olorum". No mesmo ano, Gil lançou no disco "A Raça Humana" a denúncia "Mão da Limpeza": "‘Na verdade a mão escrava/ Passava a vida limpando o que o branco sujava ê/ Imagina só o que o nego penava ê". No disco "Dia Dorim Noite Neon", de 1985, ele gravou "Oração pela Libertação da África do Sul": "Tornai vermelho todo sangue azul/ Já que vermelho tem sido todo sangue derramado/ Todo corpo, todo irmão chicoteado/ (...)/ Senhor, irmão de Tupã, fazei/ Com que o chicote seja por fim pendurado".

Por sua vez, Caetano escreveu a canção "Sugar Cane Fields Forever", gravada no disco "Araçá Azul", de 1972. Na canção, registrada como de Caetano Veloso e do poeta maranhense Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902), Caetano repete à exaustão estes versos: "Sou um mulato nato/ No sentido lato/ Mulato democrático do litoral".

Em 1979 o baiano gravou "Beleza Pura", uma ode à beleza negra: "Moça preta do Curuzu/ beleza pura.../ Quando essa preta começa a tratar do cabelo/ É de se olhar/ Toda a trama da trança/ A transa do cabelo/ Conchas do mar/ Ela manda buscar pra botar no cabelo/ Toda minúcia/ Toda delícia". Em 1985, Caetano compôs "Milagres do Povo", que cantou a redenção da negritude: "E o povo negro entendeu/ Que o grande vencedor/ Se ergue além da dor/ Tudo chegou sobrevivente num navio/ Quem descobriu o Brasil/ Foi o negro que viu/ A crueldade bem de frente e ainda produziu milagres/ De fé no extremo Ocidente".

Em 1993 Caetano novamente tematizou e a negritude em samba famoso: "A tristeza é senhora/ Desde que o samba é samba é assim/ A lágrima clara sobre a pele escura/ A noite e a chuva que cai lá fora". Em 1997, o baiano musicou o clássico poema abolicionista de Castro Alves na canção "Navio Negreiro", lançada no disco "Livro". Em 2001, ele se inspirou em outro abolicionista, o pernambucano Joaquim Nabuco, para compor "Noites do Norte", que também deu nome ao disco daquele ano. No mesmo disco, o baiano homenageou a princesa Isabel em "13 de Maio" e o líder do maior quilombo do país, na regravação de "Zumbi", canção de Jorge Ben.

E no disco "Tropicália 2", de 1993, que comemorava os 25 anos do movimento cultural, Caetano e Gil compuseram a canção "Haiti", aquela que ficou conhecida pelo refrão "o Haiti não é aqui/ o Haiti é aqui". Nos versos, os autores cantam várias cenas das selvagerias brasileiras. A primeira delas trata da nossa confusão racial, descrevendo a cena tão comum de policiais negros batendo em outros indivíduos negros em pleno pelourinho soteropolitano, cujo fato real inspirou Caetano na época.

É uma imagem que remete em muito ao que aconteceu com Moïse, igualmente morto por outros negros: "Quando você for convidado/ Pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado/ Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/ Dando porrada na nuca de malandros pretos/ De ladrões mulatos/ E outros quase brancos/ Tratados como pretos/ Só pra mostrar aos outros quase pretos/ E são quase todos pretos/ Como é que pretos, pobres e mulatos/ E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados/ E não importa se olhos do mundo inteiro possam/ Estar por um momento voltados para o largo/ Onde os escravos eram castigados".

Diante do assassinato cruel de Moïse Mugenyi Kabagambe , Caetano foi às redes sociais e escreveu: "Que o nome do quiosque seja Tropicália aprofunda, para mim, a dor de constatar que um refugiado da violência encontra violência no Brasil".

Não é plausível pensar que os líderes da tropicália tenham em qualquer momento passado pano para a selvageria racial brasileira. A crítica a qualquer cânone estético é bem-vinda e salutar. Mas não é justo subestimar a cultura nacional no que ela produziu de melhor. É preciso estar atento e forte.

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