Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​
Descrição de chapéu Séries

'Cenas de um Casamento' de Ingmar Bergman é obra-prima que dispensa remake

Não assisti à adaptação da série com Jessica Chastain e Oscar Isaac, dirigida pelo habilidoso Hagai Levi

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"Você já viu…" –não era preciso nem terminarem a pergunta para eu saber que o complemento seria "Cenas de um Casamento", o remake da série de Ingmar Bergman lançada no mês passado pela HBO.

A razão para eu adivinhar a pergunta poderia ser minha relação com Bergman, que não é segredo para ninguém: mesmo antes de ser diretora da fundação Bergman Center e de morar na casa do diretor sueco na ilha de Fårö, ele já era o meu artista favorito.

Mas o motivo da dedução era outro e bem menos pessoal: a pergunta se repetiu num período que coincidiu com a época de lançamento da série. O fenômeno foi bem representado num meme que recebi outro dia: uma garota (Britney Spears) sorri animadamente sob a legenda "filmes na minha lista há meses" e, na sua frente, uma pessoa (Ellen DeGeneres, sob a legenda "eu") abraça carinhosamente um sujeito (Ryan Gosling) identificado como "o filme sobre o qual ouvi falar três minutos atrás".

A bola da vez é "Round 6", da Netflix. Eu, que por razões pessoais e profissionais circulo regularmente por culturas diferentes, vejo o fenômeno com clareza. Num laboratório de roteiro nas Filipinas, na festa de aniversário do meu marido na Suécia, nas conversas com amigos brasileiros: só se fala na série sul-coreana.

(Já adianto que também não a vi, mas soube por amigos do sudeste asiático que o projeto levou 12 anos para ser aprovado, o que dá aos amadores uma ideia do funcionamento da indústria audiovisual e quanto suor e lágrimas estão por trás de um sucesso.)

Mas, voltando ao Bergman, ou melhor, ao não-Bergman.

Muitos dirão que um remake, mesmo ruim, é bom porque aumenta o interesse sobre o original. Não compro esse papo. A série de Bergman está disponível na HBO? Ela começa a rodar automaticamente durante os créditos da nova versão? Há informação sobre o original na sinopse da nova série? Não, não e não. Se você vir o remake e quiser ir atrás do original, boa sorte.

Digitei "cenas de um casamento bergman" no Google e levou algumas páginas até chegar à série original: todas as ocorrências iniciais são sobre a nova versão. Daria até para dizer que o remake não só não ajuda como atrapalha a vida do original. E, sendo bem realista, é muito pouco provável que alguém que não tenha visto ou que não conheça Bergman vá assistir a uma série feita para a TV sueca em 1973 depois de ter consumido –e a escolha de verbo não é gratuita –o novo produto engendrado pelo habilidoso Hagai Levi para paladares modernos.

Muitos argumentarão: "Mas Hagai Levi é um ótimo diretor". Sim, gosto bastante de "BeTipul", série israelense que ele cocriou e exportou para inúmeros países, inclusive os Estados Unidos (na versão mais conhecida do produto, "In Treatment") e até para o Brasil, como "Sessão de Terapia". Tenho minhas reservas a "The Affair", outra série de Levi, mas a premissa é muito boa, ponto para ele –que, no fundo, me impressiona mais pelo seu tino comercial do que senso artístico.

E aí preciso contar um pouco sobre a origem do projeto contemporâneo. A iniciativa parte de Daniel Bergman, um dos nove filhos do diretor sueco e fruto do sua união com a pianista Käbi Laretei. Segundo ele, a série original era voltada aos adultos: "Não se fala dos filhos. [...] O divórcio moderno não é controverso pois as pessoas se divorciam o tempo todo. O grande drama é dos filhos".

Levi aceita o convite e sabiamente se afasta da premissa, mantendo os adultos em foco, como no original. Além de bom senso, ele talvez tenha visto "História de um Casamento", em que Noah Baumbach tentou incluir um filho no cenário do divórcio, o que, na visão de muitos, inclusive esta que vos escreve, resultou numa criança-token jogada de um lado para o outro em cenas aleatórias.

Não me entendam mal: alguém poderia sim escrever sobre o divórcio do ponto de vista dos filhos. E muitos já o fizeram em belos filmes. Cito alguns que me vêm à cabeça agora: "Pelos Olhos de Maisie", "Diferenças Irreconciliáveis", "Os Excêntricos Tenenbaums", "Boyhood" e até "A Lula e a Baleia" do próprio Baumbach.

Contudo, "Cenas de um Casamento" nunca foi sobre isso.

"Os atores estão ótimos!" Não duvido. Mas li a conversa entre Liv Ullmann, protagonista em 1973, e Jessica Chastain, que faz o papel na nova versão (infelizmente somente em inglês, aqui), e já no subtítulo me deu um nó no estômago: "As abordagens [das duas atrizes] não poderiam ser mais diferentes". Sigo a leitura com medo (imagina se estivesse assistindo à série!).

Destaco aqui apenas um trecho da fala de Liv para dar uma ideia do embate: "Para mim é muito claro que se trata de um homem olhando e escrevendo e dirigindo esta versão, enquanto Ingmar era um homem que sempre olhava as coisas sob o ponto de vista feminino. É por isso que trabalhávamos tanto juntos. Eu sempre achei que ele quisesse que eu fosse ele, mas não era isso: ele queria que a mulher que havia nele saísse por mim".

Amigas e amigos contam de sua identificação com a série. Contam que Levi inverteu os gêneros dos protagonistas. Mas o que havia de errado com as personagens como eram?

E aqui chegamos ao xis da questão: "Cenas de um Casamento", de 1973, é uma obra-prima.

Uma obra-prima que já havia sido "adaptada" na década de 1970 pelo próprio Bergman, que reduziu os 282 minutos da obra seriada para 168 para distribuição em salas de cinema. A versão reduzida, infelizmente, acabou se tornando a praxe de exibição pelo mundo, ao ponto de muita gente conhecer "Cenas de um Casamento" como filme e não como série.

Nem essa adaptação feita pelo próprio diretor dá para engolir: belas cenas cortadas, o fim do sentimento de mergulho profundo na relação do casal, as mudanças nos personagens geradas pelo novo rearranjo de sequências.

Obras-primas não precisam, nem merecem, ser alteradas. Inclusive porque elas têm um poder secreto: nos tocar de forma diferente conforme o momento de vida em que estamos. Por isso, se eu tiver cinco horas disponíveis, reverei o Bergman. Mal posso esperar pelo que poderei descobrir no meu próximo encontro com "Cenas de um Casamento". O de 1973, claro.

PS: Uma feliz coincidência poder escrever sobre Bergman na minha coluna de estreia. No mais, este será um espaço para reflexão sobre expressões artísticas nas suas mais variadas formas. Bem-vindos!

(Serviço: se você ainda tem um aparelho de DVD, a série original de Bergman está disponível no Brasil pela Versátil)

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