Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Indicado ao Oscar, 'Fuga' mostra como animação pode expandir os documentários

Papel e tinta dão oportunidade de acompanhar de forma íntima uma história que de outra forma não seria acessível

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Se hoje a invasão da Ucrânia domina os noticiários do mundo, é de se esperar que logo ganhará destaque um tema subjacente a qualquer conflito bélico: os refugiados de guerra.

Essa pauta, familiar para a Europa nas últimas décadas, foi colocada em evidência para o resto do mundo semanas atrás quando a animação dinamarquesa "Fuga" fez história ao ser indicada para o Oscar nas categorias de melhor animação, melhor documentário e melhor filme internacional.

Cena da animação 'Fuga', de Jonas Poher Rasmussen
Cena da animação 'Fuga', de Jonas Poher Rasmussen - Divulgação

"Fuga", dirigido por Jonas Poher Rasmussen, está longe de ser o primeiro documentário a usar animação (o material mais antigo de que se tem notícia é o curta documental animado "O Naufrágio do Lusitânia", de 1918, dirigido por Winson McCay). Mas o fato de ser a primeira animação da história a ser indicada ao Oscar de documentário talvez indique não se tratar de um formato corriqueiro.

A combinação de documentário com animação pode soar estranha para puristas: se o formato documental é o mais fiel à realidade, a animação é o gênero com maior grau de intervenção no mundo real. Essa oposição, contudo, já está praticamente superada pelo cinema contemporâneo.

Para além da problemática de captação da realidade pelo aparato audiovisual —que sempre implica em escolhas subjetivas de posicionamento, iluminação —etc a animação tem revelado um potencial imenso para acomodar a complexidade e as contradições da realidade.

Os acenos da Academia a "Flee" trazem à mente outra animação a respeito de um episódio de guerra e que também havia feito história ao ser a primeira indicada à estatueta de melhor filme estrangeiro.

"Valsa com Bashir" (2008), do israelense Ari Folman, nasceu da necessidade do diretor de desenterrar memórias suprimidas sobre sua experiência como soldado na guerra do Líbano em 1982. À época com 19 anos, o documentarista havia participado, ainda que passivamente, do episódio de massacre de palestinos por uma milícia cristã num campo de refugiados controlado por Israel.

Enquanto Folman busca memórias soterradas pela sua psiquê em conversas gravadas com psiquiatras, experts, amigos e soldados, as animações se ocupam de tentar reconstruir memórias, fantasias, alucinações, que registro documental nenhum seria capaz de fazer. Mais do que recriações do passado, o que se propõe aqui é a criação de possibilidades de passado e de presente.

Ao final do filme, Folman abre mão da técnica de animação e faz uso de material de arquivo para revelar registros históricos do massacre, o que acaba por conferir ao relato do longa o peso verídico que tem.

"Fuga" é uma obra que também se vale do formato animado para recriar um relato em primeira pessoa. Amin, um refugiado afegão, conta pela primeira vez sua longa trajetória como refugiado desde a saída de Cabul nos anos 1980 até a chegada em Copenhague anos depois.

O longa dinamarquês é interessante por fazer uso de animação em suas três variantes clássicas: desenhos realistas, quase documentais, para retratar o passado contado por Amin; representações menos realistas e mais estilizadas para as experiências mais duras do refugiado com traficantes de humanos; e, por fim, uma animação totalmente abstrata para os momentos de trauma mais violento ou quando a memória de Amin falha (intencionalmente ou não).

Também em "Fuga" há uso de material de arquivo, mas de forma distinta de "Valsa com Bashir". É importante aqui que o espectador seja lembrado constantemente de que se trata de uma história real, e não de uma ficção. Então as inserções de imagens reais são feitas durante o transcorrer do relato, em momentos, diga-se de passagem, extremamente oportunos, e que conferem um colorido muito interessante ao longa.

Além disso, o longa de Rasmussen dá um passo além em termos de construção de dramaturgia ao usar a animação para propor diálogos (complementaridade, contraste, reflexo) entre imagens. Um exemplo: quando Amin, ainda garoto, está com sua mãe e irmãos num apartamento na Rússia aguardando notícias das irmãs que estão sendo transportadas para a Suécia de forma ilegal dentro de um contêiner sufocante. Na tela, vemos a mãe de Amin abrir subitamente a janela do apartamento, "para entrar ar fresco". O efeito no espectador é devastador.

É interessante notar que tanto o filme israelense quanto o dinamarquês partem de uma premissa comum: a impossibilidade de contar aquela história sem o uso da animação. "Valsa com Bashir" pelo foco em elementos por si só impossíveis de representação de outra forma (como sonhos, delírios, sensações). E "Fuga" pela resistência (e impossibilidade concreta?) de o protagonista da história de revelar sua vida real considerando que sua concessão de asilo foi baseada numa história falsa.

Esse aspecto da inadequação do registro audiovisual clássico para essas narrativas específicas fica evidente numa cena de "Valsa com Bashir", em que Folman pergunta a um colega se poderia fazer um registro de seu filho brincando, ao que o pai responde: "Contanto que você desenhe, mas não filme."

Na história do cinema, as discussões sobre o formato documental frequentemente giraram em torno da necessidade de diferenciação do jornalismo: ao documentarista se exigia fazer mais do que simplesmente ligar a câmera.

Isso gerou a máxima de criatividade no uso dos signos cinematográficos que acabou evoluindo, nos dias atuais, para uma manipulação exclusivamente dramatúrgica dos elementos da narrativa documental. Isto é, criar artificialmente para a história momentos de suspense, forjar um antagonista, uma crise, uma redenção – os produtos audiovisuais contemporâneos que mais se aproximam da estrutura clássica de narrativa do cinema são os documentários de true crime produzidos pelas plataformas de streaming.

No entanto, documentários animados como "Fuga" e "Valsa com Bashir" renovam essa discussão e extrapolam a ideia de que o documentário deve almejar um tratamento criativo da realidade.

O recurso da animação tem se mostrado um instrumento potente em narrativas tão sensíveis como as histórias de guerra e suas consequências humanas. Ao permitir um distanciamento entre o registro real e a representação, o formato animado permitiu nesses dois casos o acesso a histórias e experiências que um simples "ligar de câmera" não daria conta.

Graças à intermediação por papel e tinta (ou, sendo mais moderna, programas de computação gráfica), foi dada ao espectador a oportunidade de acompanhar de forma íntima uma história que de outra forma não lhe seria acessível.

Quem sabe essa nova geração de documentários animados possa difundir o acesso a histórias trágicas que repetem o que não cansamos de repetir: parem com as guerras.

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