Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Descrição de chapéu Cinema

'Borgen', que chega ao 4º ano na Netflix, é perfeita para maratona sem culpa

Com uma trama sobre os jogos de poder na política, seriado dinamarquês ganha nova temporada no serviço de streaming

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Falta pouco mais de um mês para o dia 2 de junho de 2022, o que dá a você, leitor, tempo suficiente para assistir aos 30 episódios da série dinamarquesa "Borgen" antes do lançamento da quarta temporada. Se parece um cronograma apertado, saiba que o real desafio será assistir somente a um episódio por dia.

Produzida pela televisão dinamarquesa entre 2010 e 2013, a série é uma daquelas que fez história e deixou saudade em todos os seus espectadores. Não conheço ninguém que não tenha gostado de "Borgen": o mundo se divide entre os fanáticos pela série e todos aqueles que ainda não a viram. Infelizmente, há pessoas demais no segundo grupo, o que agora pode mudar com ajuda da Netflix.

A plataforma de streaming topou ressuscitar o seriado para uma quarta temporada "independente", isto é, o espectador não precisa ter visto as anteriores para entender a história. A turma original de criadores foi reunida e, preparando terreno para o lançamento mundial em junho, as temporadas anteriores foram disponibilizadas para os assinantes.

Cena de série representando uma mulher branca e loira tendo atrás de si um homem, também branco e loiro
Cena da série dinamarquesa 'Borgen' - Divulgação

Criada por Adam Price, "Borgen" se passa na Dinamarca e acompanha a trajetória de Birgitte Nyborg, uma parlamentar baseada na capital Copenhague que tem como local de trabalho o histórico prédio do governo dinamarquês que dá título à série.

Cada episódio começa com uma frase célebre que o posiciona tematicamente: há dizeres de Maquiavel, Churchill, Lênin, James Joyce, Dante, Shakespeare e até da Bíblia. "Borgen" não se envergonha em beber nas mais variadas fontes de sabedoria da história do pensamento humano sobre este que é o tema universal em torno do qual gira a série, o poder.

Faz sentido para um brasileiro assistir a uma série sobre a democracia parlamentarista funcional de um país igualitário onde a grande mídia ainda tenta atuar efetivamente em defesa das instituições políticas? A resposta é, sem dúvidas, sim.

Isto porque "Borgen" é muito mais do que um drama de gabinete e ultrapassa as paredes e muralhas do prédio público que lhe dá nome. A série acompanha as personagens em suas casas, leva o espectador aos bastidores dos canais de jornalismo e até pelos campos de pequenos produtores agrícolas no interior da Dinamarca.

Pelas mãos de Nyborg, interpretada pela impecável Sidse Babett Knudsen, o espectador é levado ao centro da engrenagem política e a transforma em algo que pode ser compreendido e consumido de forma dramática. Sem panfletos, "Borgen" levanta questões essenciais da democracia e mostra como a política pode se afastar do cidadão comum –e também ensina como trazê-lo de volta, manipulando a constelação nem sempre aliada de Estado, governo, mídia e interesses privados.

Para além de suas aventuras políticas, Nybord é uma personagem excepcionalmente bem escrita, uma mulher forte e ambiciosa, mas também imperfeita e consciente de suas limitações. Aos 44 anos, a dinamarquesa tem uma vida tridimensional na qual se acumulam conflitos familiares, desafios profissionais e questões íntimas —inclusive físicas.

Um dos méritos desse retrato é uma espécie de constatação "de mão dupla" sobre a vida política. De um lado, fica claro que poder e ambição não impedem honestidade e posicionamento ideológico. De outro, evidencia-se que moral e ética não são incompatíveis com posicionamento estratégico no exercício político profissional: Nyborg faz uso de "spindoktorer" —estrategistas de comunicação capazes de manipular a percepção pública de uma situação—, troca favores com colegas da oposição e se vale de analistas políticos para passar recados à sociedade.

Comparado com o seu equivalente norte-americano, "The West Wing: Nos Bastidores do Poder", "Borgen" vai mais longe em termos de amplitude e diversidade. O excelente drama político dos EUA se apoiava numa visão maniqueísta do mundo, dividido entre mocinhos e bandidos, além de abusar da exploração de idiossincrasias e especificidades muitos próprias daquele país, como a própria Casa Branca.

Já a trajetória de Nyborg –assim como a dos personagens secundários do seriado– faz parte de uma dança constante de ponderação, em que se deve escolher o melhor caminho possível dadas as informações daquele momento. Em última instância, "Borgen" tem como tema central o conflito gerado pelo poder, seja ele de decisão, a escolha entre vida profissional e privada, a hierarquia de valores, a dualidade entre ética jornalística e pressão por audiência, a dúvida sobre ter ou não ter filhos.

"Borgen" conseguiu ao longo do anos atualizar as questões pessoais enfrentadas pela protagonista, assim como seus desafios profissionais em função das diferentes posições que ocupa na constelação política da Dinamarca. É preciso sempre lidar com as restrições do momento para se adaptar e continuar no jogo. Afinal, Nyborg é antes de tudo uma bem-intencionada jogadora.

Com alegria, posso testemunhar que a quarta temporada, que já estreou nos países nórdicos, não desapontará os fãs do seriado. Nyborg volta surpreendente e os novos episódios exploram questões muito atuais, como a crise climática, problemas de depressão generalizada e o custo pessoal que se paga para se atingir o topo.

Quem se acostumou com a dramaturgia dos criadores das primeiras temporadas pode se incomodar, principalmente no primeiro episódio, com uma ou outra clara interferência criativa da plataforma de streaming que financiou a produção. Mas logo o seriado entra no eixo e volta ao tipo de construção dramática que conquistou o pequeno, mas convencidíssimo, grupo de amantes de "Borgen".

Para o outro grupo, dos que ainda não viram o seriado, esta é a oportunidade perfeita para uma maratona audiovisual deliciosa e sem culpa de conteúdo de alto nível.

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