Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

'O Beco do Pesadelo' vai além do filme noir com ecos do pós-pandemia

Em filme indicado ao Oscar, Guillermo del Toro sai do fantástico para se debruçar sobre um mundo real de desencanto

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Nas últimas décadas, a assinatura de Guillermo del Toro se tornou sinônimo de filmes fantásticos: "Hellboy", a trilogia "O Hobbit", "O Labirinto do Fauno", culminando em sua consagração máxima com "A Forma da Água", de 2018, laureado com o Oscar de melhor filme e melhor direção. Em seu trabalho mais recente, contudo, o mexicano explora um outro gênero —o filme noir.

"O Beco do Pesadelo" é um passeio sobre a América pós-Grande Depressão, nos anos 1940, sob o olhar de Stanton Carlisle, um viajante misterioso e determinado que se junta a uma trupe circense para tentar a vida. Mas como bem apontou Scorsese em texto publicado na mídia americana, seria injustiça reduzir o longa de Del Toro a um mero filme noir.

Bradley Cooper em cena do filme 'O Beco do Pesadelo', de Guillermo del Toro - Divulgação

O longa é uma adaptação do livro homônimo escrito por William Lindsay Gresham em 1946, que de carona com o filme ganhou tradução para o português pela editora Planeta no final do ano passado. O romance, uma narrativa clássica de atmosfera marcadamente noir sobre a ascensão e queda do personagem ambicioso capaz de tudo para subir na vida, já havia dado origem ao clássico noir "O Beco das Almas Perdidas", dirigido por Edmund Goulding em 1947.

As três obras têm em comum uma história brutal a partir da observação quase cínica da sociedade americana pós-Grande Depressão de 1929: um ambiente de desencanto profundo, falta de perspectivas, pobreza e alcoolismo generalizados —e o oportunismo como única saída possível para um futuro melhor.

Quem assistir ao filme de 1947 poderá notar que Del Toro toma emprestadas algumas soluções de mise-en-scène e posicionamento de câmera, mas o tom de sua adaptação para o livro em 2021 é único.

O diretor mexicano, que sempre confiou na magia de seres misteriosos para sustentar seus filmes, fez de "O Beco do Pesadelo" um estudo de personagens muito reais, indo muito além das premissas do gênero. Curiosamente, aventou-se o título "O Beco das Almas Perdidas" para o lançamento no Brasil, o qual teria sido muito adequado ao que propõe a obra de Del Toro.

"Beco" é um filme que são dois. Com duas horas e meia de duração, ele dedica a primeira hora ao ambiente precário da trupe circense, e os 90 minutos finais ao ambiente urbano de riqueza que o protagonista passa a frequentar.

É na primeira parte que temos um desfile de personagens magistralmente incorporados por um time excepcional de atores —Willem Dafoe, como o colecionador de fetos e recrutador de geeks, Toni Collette como a vidente Zeena, David Strathairn como o ilusionista alcóolatra e grande mentor do protagonista, Rooney Mara como a inocente Molly, Ron Perlman como Bruno, o homem mais forte do mundo (que tem dor nos joelhos).

O que impressiona no ambiente do circo é a profundidade que Del Toro consegue dar a cada personagem. Cada qual um monstro à sua maneira, eles são introduzidos de forma eficiente com diálogos que fogem ao comum e um tratamento visual de câmera que adiciona elementos ao perfil de cada um —Dafoe atrás das jarras, o close no pé de Collette.

Dafoe, aliás, protagoniza duas cenas memoráveis. Sua expressão quando explica o golpe dos geeks para o protagonista é uma delas. A outra é uma fala simples, mas que aos ouvidos de um espectador de março de 2022 pós-invasão da Ucrânia parece um sinistro déjà-vu: "Você viu aquele maluco que parece o Chaplin? Ele acabou de invadir a Polônia! Que coragem!".

Willem Dafoe e Bradley Cooper em cena do filme 'O Beco do Pesadelo', de Guillermo del Toro - Divulgação

Há algo de extremamente familiar no desencanto da América dos anos 1940 que tenta se recuperar de dez anos de uma profunda crise econômica. Nesse sentido, é significativo o salto temático de Del Toro que, depois de um filme sobre a faxineira que se apaixona por um ser mutante, se debruça sobre um mundo real de desencanto.

Qualquer semelhança com o nosso tempo não é mera coincidência. Afinal, como definir o estado da humanidade tentando juntar os cacos da sociedade pós-pandemia, vivendo o auge de uma crise climática que não parece ter solução e às voltas com uma guerra que precipita o mundo a um conflito nuclear que parecia inimaginável?

A segunda parte de "Beco" tem outro time igualmente potente de atores encarnando monstros vítimas de suas próprias imperfeições: Cate Blanchett como a femme fatale noir na forma de uma psicanalista oportunista e fria; e Richard Jenkins como Ezra, o milionário assombrado por seus crimes e desesperado por uma conexão emocional.

Por fim, aquele que carrega o protagonismo da história, Bradley Cooper, no que parece ser a atuação que finalmente lhe renderá um Oscar depois de oito nomeações sem prêmio. Del Toro subverteu muitas das convenções do filme noir, de profunda influência expressionista, e optou por colocar o personagem de Cooper na sombra: suas aparições trazem consigo ambiguidades, ele não habita um mundo preto e branco.

Se existe algum tropeço na construção do protagonista, eu arriscaria que a responsabilidade é da ambição de Del Toro, muito mais do que de qualquer limitação de Cooper. O mexicano, que já havia tentado comprar os direitos de adaptação do livro nos anos 1990, assumiu a missão ingrata de dar conta de todos os ótimos personagens secundários do livro. O resultado foram algumas simplificações de arcos dramáticos com transformações que podem parecer aceleradas para o público.

Mas não há dúvidas que os méritos de "O Beco do Pesadelo" superam em muito qualquer irregularidade em sua execução. É uma pena que, lançado nos cinemas ainda na ressaca da Covid-19 em 2021, o filme tenha passado quase desapercebido para o público que ainda hesitava em voltar às salas. Indicado para cinco estatuetas do Oscar, pode ser que ainda encontre o seu público como consequência de eventual premiação.

A boa notícia é que o público brasileiro tem a chance de ver esse grande filme como ele merece, na tela grande do cinema. Em cartaz nas principais capitais brasileiras, "O Beco do Pesadelo" mostra um diretor no auge de sua forma e traz uma história estranhamente atual e uma lição que, abusando da licença poética de que eu talvez nem disponha, creio que a humanidade precisaria aprender.

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